COLUNA ENEM E EDUCAÇÃO

Educação pós-pandemia: o desafio de aproveitar ferramentas digitais para melhorar aprendizado e tornar rotina o ensino híbrido

Tecnologia foi fundamental para evitar a interrupção do ensino, mas evidenciou o pouco preparo da comunidade escolar em usá-la e a enorme desigualdade entre pobres e ricos no acesso à internet e a equipamentos

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Margarida Azevedo

Publicado em 27/10/2021 às 6:00 | Atualizado em 09/02/2022 às 10:25
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Com colégios obrigatoriamente fechados por causa da covid-19, no ano passado, as salas das residências se transformaram em salas de aulas. Novas formas de ensinar e de aprender tiveram que ser adotadas em pouco tempo. Se por um lado a tecnologia foi fundamental para evitar a interrupção das atividades escolares, por outro evidenciou o pouco preparo da comunidade escolar, sobretudo dos docentes, em usá-la. Também expôs a enorme desigualdade entre pobres e ricos no acesso à internet e a equipamentos como celulares, tablets e computadores. O desafio, com a reabertura das escolas, é aproveitar essas ferramentas digitais para minimizar as lacunas de aprendizagem e tornar o ensino híbrido uma rotina na educação, independentemente da pandemia.

Na rede pública, 90% das escolas estaduais e 84% das municipais usaram plataformas como WhatsApp, Zoom e YouTube para repassar os conteúdos para os estudantes, segundo levantamento do Ministério da Educação (MEC) a partir de dados do Censo Escolar 2020. Em contrapartida, somente 21,2% das redes estaduais e 2% das municipais ofereceram internet para os estudantes. Em relação aos equipamentos (computadores ou celulares), 22,6% das redes estaduais e 4,3% disponibilizaram algum dispositivo para os alunos. Mesmo com a retomada das aulas presenciais, o uso de dispositivos é muito necessário, uma vez que ainda há rodízios de turmas no formato presencial e remoto.

Em Pernambuco, o governo estadual prometeu, em maio passado, ou seja, mais de um ano após o fechamento das escolas (aconteceu em março de 2020), dar notebooks aos docentes, por meio do Programa Professor Conectado, para que eles pudessem usar nas aulas remotas. Inicialmente, a previsão era entregar os equipamentos em julho, o que não aconteceu devido à dificuldade de encontrar as máquinas no mercado.

A pouco mais de dois meses para o encerramento do ano letivo, somente 268 profissionais receberam os computadores, de um universo de 17 mil pessoas. Durante todo esse período, os docentes têm se virado com celulares e computadores comprados com recursos próprios para garantir as aulas aos estudantes que, devido aos rodízios, ainda estão em casa acompanhando as aulas remotamente.

Na capital pernambucana, a prefeitura do Recife optou por dar equipamentos aos alunos. Igualmente não cumpriu o prazo que ela mesma anunciou: previa entregar cerca de 42 mil tablets para os estudantes do 4º ao 9º ano do ensino fundamental a partir de agosto. Só cerca de 1.500 alunos da educação especial ganharam até agora. O atraso se deve a problemas na licitação e também na disponibilidade de entrega das empresas contratadas.

DAY SANTOS/JC IMAGEM
RETORNO Maria Flor comemorou a volta presencial para escola - DAY SANTOS/JC IMAGEM

Maria Flor Gadelha, 12 anos, aluna do 7º ano do ensino fundamental da Escola Municipal Reitor João Alfredo, na Ilha do Leite, área central do Recife, sofreu durante o ensino remoto. "Não tinha celular e a internet não era boa. Usei o telefone da minha avó para assistir às aulas. Às vezes a internet travava ou caía", conta a estudante, que desde julho, com o retorno das aulas presenciais na rede municipal de Recife, corre atrás do prejuízo para aprender o que não conseguiu durante as atividades online.

Ela relata que a dificuldade com conectividade e equipamentos era comum a outros colegas. "Em muitas aulas virtuais havia só eu e o professor", afirma a adolescente, na expectativa de ganhar um dos tablets prometidos pela prefeitura.

DEDICAÇÃO

Em Olinda, no Grande Recife, a professora Alcione Juvenal, 55, chorou quando seu celular quebrou pois não conseguiria continuar com as aulas remotas. "Não estava planejando ter um aparelho novo, mas não podia deixar meus alunos sem aula. Pedi o cartão de crédito emprestado de uma sobrinha e comprei parcelado", diz Alcione, que leciona o 5º ano na Escola Municipal Maria da Glória Advínvcula, localizada no Guadalupe, no Sítio Histórico da cidade.

BRUNO CAMPOS/JC IMAGEM
VIRTUAL Alcione comprou celular com cartão emprestado para dar aula - BRUNO CAMPOS/JC IMAGEM

De uma turma de 26 alunos, menos da metade dava retorno das atividades online antes da volta do ensino presencial, ocorrida em agosto passado. "Muitas famílias não dispõem de estrutura. Tem mãe que passa o dia trabalhado e à noite, quando chega com o celular, são três filhos para usar o aparelho. Casos de alunos que a internet foi cortada por falta de pagamento ou que precisa esperar o vizinho chegar para filar o sinal. Ou que não conseguem abrir os vídeos porque o telefone não comporta", relata Alcione. "Muitas vezes respondo mensagens às 22h, 23h, fora do meu horário de trabalho. Mas não posso deixar esse aluno que quer aprender. Me coloco no lugar dele. Escolhi ser professora."

DESIGUALDADES

A realidade vivenciada pela professora Alcione é confirmada pela pesquisa Tempo para Escola na Pandemia, realizada pela Fundação Getúlio Vargas (FGV): mostrou que os alunos mais vulneráveis socialmente tiveram menos acesso ao ensino remoto, o que vai repercutir nos indicadores educacionais futuros. A análise por estrato de renda, por exemplo, indicou que os estudantes mais pobres foram 633% mais afetados pela falta de oferta de atividades escolares que os alunos mais ricos. O estudo destaca que "a desigualdade de oportunidades e de resultados educacionais aumentará durante a pandemia, quebrando tendência histórica de décadas."

"Quanto mais pobre o aluno, menor o tempo de escola dele. Alunos de escola privada estudaram mais de 3 horas por dia e alunos em escola pública menos de 2 horas. Quer dizer, mais de uma hora de diferença entre eles", diz o pesquisador Marcelo Neri, um dos responsáveis pela pesquisa. Em Pernambuco, conforme o estudo, a média diária de horas dedicadas ao ensino remoto foi 2,99 para estudantes de 6 a 15 anos da classe AB contra 2,02 da classe E.

IMPROVISO

Mãe de quatro filhos, Maria Santos, 40, improvisou um cantinho de estudos na pequena sala de sua casa, na Imbiribeira, Zona Sul do Recife. Trabalhava como serviços gerais numa hamburgueria, mas foi demitida no início da pandemia. O espaço para os filhos estudarem é divido com pipocas, confeitos, picolé e outros doces que ela vende. O marido era cobrador de ônibus e também está desempregado.

Um dos filhos, Allisson Guilherme, 8, está no 3º ano do ensino fundamental da rede municipal de Recife. Outra filha, Anielly Victoria, 5, estuda no grupo 5 da educação infantil. "Allisson vai uma semana presencial e fica três em casa com atividade remota. Anielly vai todas as semanas, mas somente uma vez, às segundas, por causa dos rodízios. As professoras mandam as tarefas e as explicações por áudio pelo WhatsApp", diz Maria. Aula remota, ao vivo, não dura nem 10 minutos.

"Procuro ensinar, mas não sou professora. Fico preocupada pois acho que poderiam estar mais avançados no aprendizado", comenta Maria.

Para os gêmeos Miguel e Vitor Borba, 13, alunos do 7º ano de uma escola privada do Recife, a rotina de aulas mudou, ano passado, porque o ensino passou a ser virtual. Mas, mesmo em casa, eles acompanhavam as atividades das 7h10 às 12h40. Cada um tem um notebook. Para melhorar o sinal de internet e equipar o local de estudos com mesa, cadeiras e outros materiais, a família deles investiu cerca de R$ 2 mil.

BRUNO CAMPOS/JC IMAGEM
Foto para série Educação pós pandemia - BRUNO CAMPOS/JC IMAGEM

"No começo das aulas online, ano passado, a internet às vezes caia. Ou algum programa travava. Foi difícil para se concentrar e para aprender. Muito melhor ter aula presencial", assegura Vitor, que desde o início deste ano passou a frequentar a escola presencialmente.

GERAÇÃO COVID

"A educação no Brasil tem uma baixa qualidade, uma baixa penetração, mas vinha melhorando. O que a pandemia faz é inverter essa tendência. Isso pode deixar cicatrizes para depois da pandemia. Por isso é preciso recuperar a defasagem não só de tempo de escola mas que se reflete no aprendizado dos alunos", enfatiza Marcelo.

"Um vento que soprava a favor da educação dos mais pobres durante a pandemia passou a soprar forte contra o avanço educacional. As crianças, principalmente as mais novas, vão ter um hiato educacional que precisa ser preenchido. Vai haver uma espécie de geração covid se nada for feito. Vão ter essas marcas, essas cicatrizes no seu ensino", pontua Marcelo Neri.

"Vamos ter que recuperar o atraso do ensino nesse longo período de pandemia e o acesso remoto pode ser uma maneira de acelerar, é uma ferramenta útil que talvez não tenhamos usado bem mas ela está disponível. A gente poderia aproveitar e fazer do limão da pandemia uma limonada, no sentido de gerar inclusão digital, criar um sistema mais híbrido de ensino. Isso poderia ter sido feito, mas a gente perdeu essa oportunidade de colocarmos a educação no século 21", conclui o pesquisador da FGV.

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