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Biografia do Abismo: entenda como a verdade deixou de interessar com a polarização política

Especialistas explicam que as pessoas não querem nada de conflito mental, apenas o que reforça suas crenças

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Jamildo Melo

Publicado em 19/12/2023 às 16:18 | Atualizado em 19/12/2023 às 16:52
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Sabe aquele tiozão do zap? A culpa não é dele... No livro Biografia do Abismo, sobre a polarização política gerada propositalmente no ambiente político do Brasil, o cientista político Felipe Nunes e o jornalista Thomas Traumann explicam que, a partir da eleição de 2022, a consolidação de um ecossistema de comunicação política enviesado produziu as chamada dissonâncias cognitivas coletivas, capazes de sugar energia de todos no bate-rebate diário do que é verdade ou mentira.

"Nesse ecossistema, os eleitores tentam minimizar os efeitos dessa sensação de conflito mental recusando informação que contraria suas crenças, ou buscando informação que reforce o que pensa. Isso explica o comportamento tão emocional em relação aos veículos de comunicação, aos jornalistas e aos institutos de pesquisa", explicam.

"Na eleição e 2022, esse ecossistema ficou escancarado. Para evitar a vitória do adversário, valia tudo: espalhar mentiras, defender o indefensável e romper com amigos e familiares. É como uma câmara de eco na qual o eleitor ouve ressoar exatamente suas próprias ideais", resumem.

Neste contexto, contam os autores, os eleitores acreditam no que preferem acreditar, a verdade factual já não interessa.

Censura contra desinformação, lobos e cordeiros

"Toda ação na Justiça para tentar limitar a disseminação de notícias falsas era imediatamente atacada como forme de "censura", uma tática usada particularmente pelo bolsonarismo no Brasil para reforçar aos olhos de seus eleitores que a Justiça estava sendo parcial contra o candidato. Em muitos casos, adotava-se o discurso em defesa das liberdades democráticas, especialmente da liberdade de expressão, para ameaçar a própria democracia. O problema, como no famoso aforismo de Isaiah Berlin, é que a liberdade total os lobos é a morte dos cordeiros", citam.

Analogia com transmissão de futebol

Desde os tempos da guerra do PSDB e PT, já se falava em fla-flu da política. Os autores contam que a situação chegou ao paroxismo, e são especialmente felizes quando fazem uma analogia direta com o fenômeno comum nos esportes.

"Grandes clubes de futebol oferecem canais de streaming que narram as partidas exclusivamente do ponto de vista do seu time. Quem já acompanhou uma partida dessas sabe que está comprando parcialidade. Tal pessoa quer assistir a um jogo que considere pênalti toda vez que seu atacante cai na área, que decrete impedimento toda vez que o adversário chute a gol e que julgue como histórica toda e qualquer vitória", comparam.

Quanto mais inteligente o eleitor, pior

No seu livro Utopia para Realistas, o filósofo holandês Rutger Bregam cita pesquisas feitas nos Estados Unidos mostrando que a busca do "viés de confirmação" não melhora com o grau de inteligência ou formação do eleitor. Com mais educação, a pessoa que cai nesta bolha é capaz de arrumar mais e mais argumentos, especialmente depois da internet e o espalhamento das fake news. Tudo para não sofrer e machucar suas crenças pessoais.

Globolixo e verdade no Facebook

Lembra dos petistas no passado recente chamando uma emissora de "Globolixo", antes dos bolsonaristas? O livro de Felipe Nunes e Traumann ajuda a entender o fenômeno.

"Os eleitores tentam desviar das dissonâncias, consumindo informação apenas sobre aquilo que lhe interessa. Esse fenômeno de desvio ou recusa é conhecido como 'viés de confirmação' e se refere à tendência de interpretar os fatos de maneira a aceitar apenas as crenças pré-existentes. Quando isso ocorre, a pessoa tende a escolher a fonte de suas informações com base no que ela quer ouvir, desprezando aquelas que contrariam suas convicções. Assim, toma decisões ignorando informações relevantes que poderiam fazê-la mudar o comportamento", afirmam.

Não se trata de nada novo, uma vez no deserto do Atacama, no Peru, em viagem, ao ser apresentado a duas jovens francesas como jornalista, uma delas foi bem pouco gentil. "A verdade está no Facebook", me disse, isto bem antes dos escândalos da Cambridge Analytica, no Reino Unido e depois Estados Unidos a partir da base de dados da plataforma americana.

Ato messiânico e ato de pertencimento

Os autores de Biografia do Abismo explicam que o problema da polarização é que, aliada às redes sociais, ela acaba criando uma normalização artificial da mentira. No limite, sai a busca de uma identidade nacional por uma identidade de grupo.

"Disseminar notícias que ajudam seu candidato, mesmo que sejam falsas, parece ser um ato messiânico. É uma tarefa a ser cumprida. Mais do que mostrar que estava certo na mesa do jantar, mais do que mostrar que tem informação também, o ato de espalhar notícias acaba cumprindo um papel de se sentir útil. Cumprir a tarefa de disseminação, por que não dizer, de evangelização, é um ato de pertencimento a um grupo... (nos EUA, uma pesquisa mostrou).. os que tinham mais de 65 anos compartilharam sete vezes mais notícias falsas do que os mais jovens, com idade entre 18 e 29 anos"

"Na lógica do algoritmo, o engajamento não é obtido por mensagens que unam a sociedade, mas por aquelas que insuflam paixões, especialmente o medo, o ressentimento e a respulsa, como explicou o cientista político italiano Giuliano da Empoli... Cultivando os ódios de cada um sem se preocupar com a coerência do coletivo".

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