Maior legado do Real, controle da inflação ensinou ao Brasil valor do poder de compra de uma moeda forte
O sucesso do Real foi tão grande que agora ele sofre do mesmo mal do sucesso da vacinação no Brasil, que fez parte da população esquecer a doença
Acredite. Mesmo após 30 anos, a maior parte da “esquerda de Campinas”, como são denominados os professores formados na respeitada universidade do interior de São Paulo, ainda resiste a reconhecer o sucesso do Plano Real como um bom experimento acadêmico. Embora reconheçam o legado para o controle da inflação.
Talvez porque o modelo conceitual tenha sido concebido por economistas liberais e social-democratas ligados à PUC-Rio, institutos sediados na antiga capital do Brasil, além de instituições como a FGV e o BNDES, cuja sede está ali.
Controle da inflação
Fazer o que? Se depois de três décadas, o único plano econômico que se mantém em uso tenha sido capaz de não só controlar a inflação, o monstro de que derrotou quase uma dezena de outros planos de estabilização.
E ao difundir o controle de gastos, ensiná-lo às gerações anteriores e às novas o valor de uma moeda estável em termos de poder aquisitivo. E de ter sido a âncora de toda a estruturação do aparelho estatal de mediação, avaliação, controle e planejamento da economia brasileira, fornecendo números aceitos e respeitados internacionalmente.
É verdade que o sucesso do Real foi tão grande que ele hoje já sofre do mesmo mal do sucesso da performance das campanhas de vacinação no Brasil, que fez parte da população esquecer. E que as novas gerações simplesmente não percebam sua importância, uma vez que nasceram depois de uma série de décadas de descontrole dos preços.
Embora tenham sentido o que é uma inflação acima de dois dígitos no segundo Governo Dilma Rousseff e, mais recentemente, no governo de Jair Bolsonaro.
História ensina
Mas a história ensina. E por isso é importante nunca esquecer o valor de uma inflação que esteja sob controle firme. Ainda que, na visão de alguns economistas, ela seja aceitável desde que seja para ajudar a promover o crescimento da economia. Especialmente se os gastos forem feitos pelo estado como agente acelerador das obras e programas necessários ao crescimento.
Felizmente, a história também ensina que isso falhou em todos os países que experimentaram explodir gastos e deixar a inflação alta para terem crescimento. Curiosamente - por mais absurdo que isso possa parecer - existem nas bibliotecas acadêmicas terabytes de arquivos, dissertações e teses tentando mostrar que o controle da inflação poderia ter sido tentado de outra forma que não o Plano Real.
E, ironicamente, um número (bem) menor de trabalhos que demonstram como ele ajudou o Brasil a virar uma Democracia mais robusta exatamente por dar valor ao seu dinheiro.
Controle efetivo
Discussões acadêmicas à parte, a verdade é que há 30 anos o país convive com uma taxa de inflação média de 4%, e isso nos ajudou a dar valor ao nosso dinheiro, embora a taxa média de crescimento de 2,5% não tenha nos permitido dar saltos maiores que os de outras economias ao redor mundo.
Talvez por força da má gestão dos governos e da incompetência dos seus ministros da área econômica. Ou das tentativas de reescrever as leis da economia.
Os 30 anos do Real, portanto, são importantes para lembrar de como fizemos essa travessia. E talvez porque exatamente tenhamos escolhido fazer isso preservando o resultado das urnas. Para o bem e para o mal.
É importante destacar: Foi respeitando os resultados das urnas que tudo começou quando, após o impeachment de Fernando Collor, assumiu Itamar Franco, sem o qual a odisseia do país ao tentar um novo plano de estabilização da inflação não teria sido possível.
Itamar Franco bancou
Itamar Franco quase nunca é lembrado como o presidente que fez a travessia de uma inflação de 42,21% ao mês em abril de 1994 para 1,21% ao final do mesmo ano. Mas ele foi definitivo por bancar a empreitada depois do trauma de um processo de retirada de um presidente pelo Congresso.
Porque depois de formar um governo de transição, ele aprovou e bancou politicamente a inovadora proposta de um grupo de economistas ousados e fez isso dentro de uma concertação política que juntou partidos exaustos de tantos planos que não deram certo.
Hoje celebramos Fernando Henrique Cardoso. E ele foi o presidente que conduziu o processo depois que cruzamos a ponte para a estabilidade. Mas não devemos esquecer que foi Itamar Franco que o sacou da confortável cadeira de chanceler para a incendiária cadeira de ministro da Fazenda.
Sucesso de gestão
Quando falamos de FHC, o traço mais importante é sua capacidade de ter conduzido o país - por oito anos - e o entregue a Lula pronto para crescer e receber os programas sociais que marcaram seus dois mandatos.
Mas ao revisitarmos a História, fica claro que o chanceler que foi substituído por Rubens Ricupero - cuja figura quase paternal - deu receptividade da população à proposta de Pérsio Arida, André Lara Resende e Edmar Bacha, percebeu o momento histórico que a vida lhe colocou nas mãos. E isso foi fundamental no jogo que estava começando.
Claro que o conjunto de forças políticas de centro direita ajudou. E revisando aqueles anos, é fácil constatar que em 2024, as chances de sucesso do Plano Real seriam próximas de zero pela fragmentação partidária.
Congresso ruim
E também pela baixíssima média de alfabetização política do atual Congresso.
Mas isso não diminui a inovação acadêmica proposta pelos três economistas. Visto após três décadas, o plano continua sendo uma inovação como texto acadêmico. Especialmente a proposta de conversão do Cruzeiro Real para URV que virou um real em 1º de julho de 1994.
E do conjunto de medidas que foram implantadas a seguir, cujo efeito na ponta provocou uma revolução monetária no comportamento do cidadão quando ele colocou no bolso as primeira cédulas de uma moeda cuja Casa da Moeda precisou se socorrer da nossa fauna para dar iconicidade ao novo dinheiro pela impossibilidade de colocar personagens da história.
Gerações Y e Z
Para os jovens das gerações Y e Z, é mesmo inimaginável que o Brasil tenha literalmente aberto as agências bancárias naquela sexta-feira (1º) para que a população pudesse trocar seu saldo em URV pelas novas cédulas ilustradas por um Beija-Flor. Mas isso aconteceu. E com os jornais publicando páginas com a reprodução das imagens de seu valor real.
Claro que a ousadia de definir que um real era um dólar ajudou depois da travessia da URV. E dezenas de países tentaram fazer isso e falharam ao longo da história. E isso ainda hoje é motivo de controvérsia e curiosidade acadêmica. Entretanto, o que poucos perceberam foi que a conversão havia durado três meses, de abril a junho de 1994, enquanto a equipe escrevia os decretos.
Também foi uma inovação como o Brasil soube lidar com o sucesso do Real e sua sobrevalorização quando um dólar chegou a ser cotado a R$ 0,80. Esse talvez tenha sido (e isso hoje é reconhecido) como o grande momento de impasse.
Armínio Fraga no BC
Felizmente, estava no Banco Central um economista como Armínio Fraga, que entendeu o risco e tomou as decisões que resultaram na nossa política de bandas cambiais que nos levaram a estabilidade que temos hoje ao ponto de termos reservas de quase US$ 380 bilhões.
E foi o risco de pôr novamente tudo a perder que fez o governo FHC completar o projeto introduzindo toda a legislação e práticas monetárias que nos tornaram respeitados internacionalmente.
O embate ideológico do presidente Lula sobre a independência do presidente do Banco Central é um bom momento para se constatar como graças ao conjunto de medidas escritas por Armínio Fraga, na primeira crise do Real foi determinante. E explica por que o sistema de reuniões do Copom, suas atas e os modelos e explicações (em inglês) permite a produção de cenários macroeconômicos de classe mundial.
Pedro Malan
Mas isso só foi feito porque Fernando Henrique, Pedro Malan e todos os demais economistas tinham ferramentas intelectuais para entender o processo. E que se mostraram determinantes com o impacto da crise global dos chamados Tigres Asiáticos.
Tudo isso é agradável de ser celebrado nesses 30 anos do Real. Porém, é importante respeitar os fatos da História. Naquele momento, foi importante o Brasil adotar a regra da eleição para presidente. E isso só foi conseguido com a aprovação da PEC nº 16 porque ficou claro que era necessário. E porque havia uma robusta poupança política da equipe liderada pelo presidente.
De certa forma, pode-se dizer hoje que FHC se reelegeu pela forma elegante com que passou a conduzir o Brasil num momento histórico que hoje é impensável pelo retorno do embate proporcionado pela ascensão da extrema direita no mundo. E da consolidação de governos autoritários.
Crescimento menor
E é importante ter presente que a nossa baixa taxa de crescimento talvez tenha se dado exatamente porque o Brasil optou pelo caminho das urnas.
É claro que quando o país optou por guiar sua Democracia pelo voto auditado e digital precisou pagar o preço do confronto das ideias. Tancredo Neves e Ulysses Guimarães costumavam dizer que Democracia custa caro e dá muito trabalho. Mas que é o melhor sistema que temos ainda hoje.
Bom modelo teórico
O sucesso dos dois governos de FHC e os dois de Lula mostram que o modelo teórico funcionou. E que começou a dar errado quando Dilma Rousseff entendeu de reformá-lo, o que nos levou ao trauma de um segundo impeachment. E nos levou ao desastre do governo Jair Bolsonaro. Mas ainda assim foi o voto nas urnas que nos salvou.
Os 30 anos do Real são um bom momento para celebrar um conceito de moeda que nos trouxe para as 10 maiores economias do mundo. E nós fizemos isso com eleições livres e uma moeda respeitada.
Talvez a performance econômica tivesse sido melhor ou mais exuberante globalmente se tivéssemos optado por outro caminho e fossemos governados por líderes autocratas.
Mas depois de três décadas de uma moeda permanente, fica claro que tomamos um caminho melhor. As eleições, reeleições e até impeachments nos levaram a um caminho que se fez estrada.
No fundo, o voto salvou o Real.