30 ANOS DO PLANO REAL: Hiperinflação corroeu os salários dos brasileiros durante uma década antes do Plano Real
Inflação chegou a 2.500% em 1990, antes da entrada em vigor do Plano Real, iniciativa que completa 30 anos e garantiu a estabilidade da moeda no País
Na madrugada daquela sexta-feira, 1° de julho de 1994, os funcionários do supermercado onde Rosilene Coutinho trabalhava, no Janga, em Paulista (PE), fizeram um mutirão para garantir a troca de preços de todos os produtos.
Pela manhã, quando as portas abrissem, os clientes deveriam encontrar as mercadorias com valores convertidos de Cruzeiro Real para Real. A data oficializava a entrada em vigor do Plano Real, uma nova tentativa de estabilizar a moeda e acabar com a hiperinflação, que alcançou seu pico em 1990, com uma taxa de 2.500% (IPCA).
Entre os anos 1980 e 1990, o Brasil teve cinco moedas: Cruzeiro (Cr$), Cruzado (CZ$), Cruzado Novo (NCZ$), Cruzeiro (Cr$) e Cruzeiro Real (CR$) e seis planos anti-inflação: Plano Cruzado, Plano Cruzado 2, Plano Bresser, Plano Verão, Plano Collor e Plano Collor 2. No período de 1986 a 1994, o País viu entrar e sair 11 ministros da Fazenda, o equivalente a um deixando a cadeira com menos de um ano (a cada 10 meses).
Embora tivesse um time renomado de economistas da PUC-Rio na sua retaguarda e uma transparência que não se viu nos outros projetos do governo federal, o Plano Real causou desconfiança. "Fernando Henrique Cardoso, o ministro da Fazenda na época do Real, informou à população que não faria nada diferente do que estava anunciando e apresentou as três etapas do programa, cumprindo cada uma delas", destaca o economista Edmar Bacha, um dos idealizadores do Plano Real.
"Confesso que quando o Plano Real foi anunciado eu não levei muita fé. Era um misto de esperança e de preocupação, de quanto tempo aquilo ia durar. Afinal, já tínhamos enfrentado tantas trocas de planos e moedas. Foram anos muito ruins para a população", recorda Rosilene, que na época foi caixa de supermercado, entre 1990 e 1994, e acompanhou ativamente as mudanças. Hoje, ela é economista doméstica formada pela UFPE e uma das dirigentes da Associação de Donas de Casa de Pernambuco, fundada em 1987.
CHEIRO DE DINHEIRO NOVO
Rosilene conta que ela e mais duas colegas do supermercado onde trabalhava foram treinadas para fazer a troca de moeda do Cruzeiro Real para o Real, que podia ser feita nas agências bancárias e em redes de supermercados.
"As cédulas do Real tinham cheiro de novas. Era curioso ver a troca de um monte de dinheiro velho por poucas notas novas, mas que tinham maior valor porque não iam se desvalorizar. Na época, uma das dificuldades foi ter troco, já que R$ 0,01 tinha valor e dava para comprar pão, por exemplo. Então, as pessoas não queriam receber um bombom de troco, elas queriam as moedas", recorda.
O primeiro dia de troca do Cruzeiro Real pelo Real foi marcado por filas, confusão e até prisões. Um Cruzeiro Real tinha paridade com uma Unidade Real de Valor (URV), que vigorou antes da entrada do Real. Dessa forma, as pessoas entregavam CR$ 2.750,00 e recebiam R$ 1,00.
"O supermercado ficou cheio naquele dia e todos os caixas estavam funcionando. Os consumidores estavam curiosos para saber o que ia acontecer. Os preços não estavam mais etiquetados em cada produto, mas em placas amarelas", diz Rosilene.
Após tantos sobressaltos nos anos de hiperinflação, o consumidor também estava confuso. Rosilene lembra o caso de uma senhora com três filhos pequenos, que colocou alguns produtos no balcão do caixa, entregou o dinheiro a ela e perguntou o que dava para comprar.
"Enquanto a dona de casa passava os produtos básicos, as crianças esperavam com iogurtes, biscoitos e outros produtos na mão para checar se dava para passar. A mulher levou todas as compras, os itens das crianças, depois pegaram mais produtos e ainda sobrou troco", afirma.
VOLTAR A SONHAR DEPOIS DO PESADELO
A economista doméstica recorda, sem saudades, os anos de inflação. Na época, ela vivia com a mãe e mais cinco irmãos. Mãe solo, o que ela recebia como varredora de rua não era suficiente para sustentar a família, sobretudo numa época em que o salário desvalorizava a todo momento e os produtos não paravam de subir.
"Eu fiquei encarregada de comprar a feira. Antes trazia 15 kg de carne, 30 kg de feijão e 15 kg de arroz para passar o mês. Com a moeda se desvalorizando, depois passei a comprar tudo pela metade", compara.
Quando recebiam seus salários no final do mês, o valor tinha sido corroído pelos índices de inflação, que chegaram a ser de até 85% ao mês, derrubando o poder de compra. Além disso, os reajustes salariais e a correção do salário-mínimo não repunham integralmente as perdas causadas pela inflação. Isso era ainda mais visível nos períodos em que o país foi submetido a acordos com o FMI e a suas políticas de arrocho salarial. Entre 1982 e 1990, o salário-mínimo perdeu 24% de seu valor, por conta das políticas de combate à inflação baseadas na restrição do consumo.
"Quem era assalariado não acompanhava as mudanças. Os preços aumentavam a todo momento. Não dava nem para pesquisar na concorrência, senão poderia perder tempo e comprar mais caro. Esquecer alguma mercadoria também não era recomendado, por isso as pessoas andavam com caderninho com a lista de compras e com calculadora para ir somando se o dinheiro ia dar. As pessoas que não viveram aquela época acham que hoje os preços são abusivos, mas não sabem o que é isso", ressalta.
Rosilene defende que o Brasil tem hoje uma moeda forte, mesmo após tantos presidentes que governaram o Brasil nesses 30 anos do Plano Real.
"Hoje as pessoas podem sonhar, não vão acordar com o pesadelo de dormir com R$ 100 e acordar com R$ 10 como acontecia. Hoje você tem escolha de comprar o que quiser e quando quiser. Pode se planejar para viajar ou comprar uma TV, por exemplo. Antes ninguém sabia como seria o amanhã. Não era uma época boa para pais e mães de família, principalmente porque não existiam as políticas públicas de acesso à renda que se tem hoje. Por isso, a pobreza e a desigualdade social eram maiores", observa.
FILHOS DO REAL E TEMPO QUE NÃO VOLTA
Dos planos econômicos do passado recente do Brasil, a economista doméstica preserva a memória dos anos de aperto e as cédulas das moedas que antecederam o Real.
"Guardei para mostrar à minha filha, que só conhece esse capítulo da história do Brasil pelos livros e o discurso dos mais velhos. Ela é filha do Plano Real, nasceu em 1993. Aliás, até os livros didáticos falam mais de macroeconomia do que da história dos trabalhadores que viveram aquela época e foram os mais prejudicados do país. A ficha das pessoas demorou a cair, com medo que o Real não fosse vingar, mas ele vingou", conclui Rosilene, testemunha da história monetária, econômica e social do Brasil.