Bolsonaro constrange os brasileiros
O presidente preferiu um caminho aparentemente mais fácil. Imaginou que um país árabe, ao lhe dar uma joia, estava fazendo à sua pessoa física
O envolvimento do ex-presidente Jair Bolsonaro numa operação de vendas de joias presenteadas ao então chefe do Executivo brasileiro constrange os brasileiros.
Como se sabe, a Polícia Federal concluiu um inquérito na semana passada apontando que foi montada uma associação criminosa no governo Jair Bolsonaro para desviar joias e presentes de alto valor recebidos em razão do cargo do ex-chefe do Executivo.
O constrangimento, certamente, também perturba seus apoiadores mais fervorosos, porque a profusão de provas e o próprio reconhecimento de ações relacionadas aos presentes que deveriam ser depositados como patrimônio nacional põem o ex-presidente num conjunto de cenas de um pacote de crimes que passa a quilômetros dos conceitos de honestidade e retidão que os levou a apoiar e destacar em suas postagens.
Provas e fotos revelam que Bolsonaro teria transformado instalações da presidência da República numa espécie de valhacouto estatal onde um grupo de pessoas discutiu a forma de repartir o butim de uma série de joias furtadas dos ativos da União. Não era isso que os apoiadores do presidente esperavam.
E salvo aqueles que se recusam a reconhecer os fatos e manter-se numa realidade paralela, a divulgação de tais informações incomoda porque transforma quem para eles seria um exemplo de retidão numa espécie de criminoso comum interessado em obter favores pessoais. E o mais preocupante, numa operação de captação de recursos fora do país para pagar despesas pessoais de seu grupo mais próximo.
Jair Bolsonaro obteve mais de 50 milhões de votos e não precisava desse tipo de atitude para sobreviver fora do poder. Além disso, o partido que lidera teria recursos para bancar suas despesas e viagens. E se ainda preferisse mais independência financeira, poderia optar pelo caminho de constituir uma fundação de direito privado para propagar suas ideias com a possibilidade de receber doações. Certamente tais instituições teriam uma lista importante de doadores.
Mas o presidente preferiu um caminho aparentemente mais fácil. Certamente imaginou que, se um dirigente de um país árabe lhe deu uma joia, estava o fazendo à sua pessoa e, portanto, estava lhe distinguindo da figura institucional. E como não apreciava o presente, poderia vendê-lo. Obviamente isso é ilegal diante do que o Brasil já tem como procedimentos em relação a presentes ao chefe do Executivo.
Mas Jair Bolsonaro preferiu ignorar por acreditar que eles eram de fato seus.
A atitude por si só já é uma enorme desconsideração com seus anfitriões. Mas o ex-presidente foi além e, ao ser questionado pelo TCU, precisou organizar uma operação no exterior para resgatar os presentes vendidos, o que acabou em cenas inusitadas e trapalhadas dignas de um filme de humor de baixa qualidade.
Infelizmente isso se deu envolvendo civis e militares de seu entorno que pareciam não se dar conta da série de crimes que a ordem do presidente lhes transmitiu. É possível compreender que figuras de formação civil duvidosas possam considerar normais essas atitudes. Mas como aceitar isso de militares, alguns deles de alta patente?
O ex-presidente precisou afirmar que as joias tinham saído do Brasil. Alegou que estavam na fazenda do ex-piloto de F1, Nelson Piquet. Mas as investigações mostram que algumas delas foram a leilão nos EUA na empresa especializada, a Fortuna Auction House, e que foram levadas pelo ajudante de ordens do presidente, o coronel Mauro Cid.
Difícil imaginar um militar numa loja de joias apresentando um item e tendo que explicar que se tratava de um bem pessoal do presidente do Brasil.
Nesta segunda (8), o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes retirou o sigilo do relatório final da Polícia Federal sobre o caso do desvio das joias sauditas e deu prazo de 15 dias para que o procurador-geral da República, Paulo Gonet, se manifeste sobre a conclusão dos investigadores. Os documentos somam 2.041 páginas ilustradas com fotos, gráficos e mensagens por WhatsApp recuperadas.
A Polícia Federal detalha a trama para a venda de joias sauditas.
Mas tudo isso só expõe agora em público como o então presidente da República cuidou pessoalmente de organizar uma operação caça-níqueis para pagar despesas que imaginava não ter como bancar quando saísse do cargo.
Os brasileiros se acostumaram com as atitudes de Bolsonaro no governo e como ele se cercou de pessoas que a sociedade certamente teria restrições ideológicas. Mas não se imaginava que, em campo pessoal, o presidente cuidasse desse tipo de atitude.
Significa que o presidente, de fato, não percebeu sua importância para a História e o movimento que chegou a liderar. E que, em lugar de se preparar para liderar seus apoiadores após perder as eleições, cuidou de tarefas que o colocam na sarjeta da história.
Pode-se respeitar Bolsonaro pelo que representa como líder de uma corrente política importante, que aliás elegeu a maior bancada na Câmara Federal. Pode-se reconhecê-lo como líder de um partido importante no debate ideológico de extrema direita. E pode-se aceitar que seu governo foi liderado por pessoas equivocadas em relação aos objetivos das questões públicas.
Mas é constrangedor constatar que, após perder as eleições, Jair Bolsonaro não apenas estimulou os atos de 8 de janeiro, mas dedicou mais atenção a amealhar dólares por meio de bens apresentados ao governo do Brasil. Preocupações que passam a quilômetros de suas obrigações como Chefe do Executivo.
E isso envergonha todos os brasileiros, inclusive os que o apoiam e veem nele um líder.