ENTREVISTA: Lilia Schwarcz

Aprendemos com a diferença

Para a nova imortal da ABL, a literatura permite não só que as pessoas convivam com o diferente, mas aprendam e se emocionem com vidas distintas

Publicado em 24/06/2024 às 19:24
Notícia

Uma das mais atuantes e respeitadas pensadoras brasileiras na atualidade, a antropóloga e historiadora Lilia Moritz Schwarcz tomou posse na Academia Brasileira de Letras, no último dia 14. Tem mais de 30 livros publicados sobre a história do Brasil, e é professora da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos. A 11ª mulher na história da ABL falou à coluna Literária do Jornal do Commercio, onde tratou de questões que vêm pautando a sua trajetória, como as desigualdades no país, a importância de uma educação pública de qualidade, e sobre o valor da diversidade. “A linguagem da diversidade é a linguagem da diferença na igualdade, e da igualdade na diferença. Estamos crescendo, e isso vai ser muito bom para o Brasil. Irá na contramão das polarizações e do sectarismo que tem preocupado o nosso sonho de democracia e nossa república imperfeita”, afirma na entrevista a seguir, onde também aborda o novo livro, “Imagens da branquitude: A presença da ausência”, a ser lançado em breve.


JC - A Sra. é a quinta mulher entre os atuais 40 membros da ABL, sendo mais uma voz reconhecida na "maioria minorizada" que vem buscando espaços de "igualdade com diferença", como tão bem definiu. E já atua há vários anos com destaque no mercado editorial brasileiro, com olhar privilegiado sobre as instituições ligadas aos livros. Como avalia a evolução da representatividade feminina no ambiente literário, no país?

Lilia Schwarcz – Eu uso a expressão “maiorias minorizadas” sobretudo para as populações negras. Se tomarmos os termos do IBGE e juntarmos as categorias preto e pardo, vamos verificar que a população negra corresponde a 56,4% dos brasileiros e brasileiras. No entanto, sabemos como o Brasil ainda pratica um racismo estrutural, de maneira que a discriminação se apresenta no espaço da educação, da saúde, da justiça, e inclusive da memória. Se interseccionarmos marcadores sociais da diferença, como raça, mas também sexo e gênero, veremos que as populações mais preconceituadas são as mulheres negras. São elas que morreram mais de Covid, as com jornadas de trabalho mais extensas, haja visto que o setor das empregadas domésticas foi o último a ser reconhecido pelas leis trabalhistas. E também no campo da literatura as desigualdades são muito evidentes. Se mulheres conformam o maior número de professoras, por exemplo, ainda são minoria no catálogo das editoras e nos lugares de protagonismo como a ABL. Mas a situação vai mudando.


JC – Qual o seu papel na Academia Brasileira de Letras?

Lilia Schwarcz – Na ABL, são muitos os papeis. Eu estou lá na cadeira de Alberto da Costa e Silva, que era meu pai afetivo, intelectual, de quem eu penso ter herdado uma série de questões. Entro sobretudo como uma historiadora afinada nas lutas contra a desigualdade, que se expressam também no campo da literatura, como expliquei acima. Durante muito tempo, o nosso cânone literário foi sobretudo masculino, branco, europeu e de classe alta. Nosso modelo de literatura, que chamávamos e ainda chamamos de universal, era muito espelhado nesse tipo de produção pouco inclusiva. Acredito que não se deva retirar nada. Eu cresci e me desenvolvi lendo esses autores maravilhosos. Mas o que a linguagem da diversidade traz é a possibilidade de mais inclusão E mais sempre é mais. Mais experiências, mais sensibilidades, mais mundos. É essa a beleza da diversidade. A convivência com a diferença no universal. Basta tomarmos a minha cadeira, a cadeira número 9, da ABL, que é composta por grandes pensadores que viajaram no tempo, na ciência, na diplomacia, pelo mundo, e na literatura. Mas não me parece coincidência que eu venha a ser a primeira mulher nessa cadeira. Causa espanto. Isso sim. Somos poucas mulheres ainda. Sou a quinta na atual gestão. E as mulheres só entraram a partir de 1976. Esse retrato não é fruto da falta de oportunidades. Estou me referindo a escolhas e durante muito tempo esse tipo de produção foi relegado ao esquecimento e ao silêncio.


JC – A composição da ABL faz parte de uma história que abrange a literatura. Qual a importância da diversidade para o Brasil?

Lilia Schwarcz – Todas as instituições, de maneira geral, as públicas e as privadas, espelham conformações da sociedade brasileira. Nesse sentido, acredito que o mercado editorial brasileiro também é revelador de como as mulheres são, também, maiorias minorizadas nos espaços de representação. E a literatura é um espaço de representatividade da maior relevância. E representatividade implica em maior presença política, social e cultural. E essa ampliação de espaços é boa para o Brasil. Eu não acredito na diversidade apenas por uma questão de reparação e de correção e porque é de fato preciso desigualar para igualar. Acredito na diversidade porque, quanto mais plurais formos, melhores nós seremos, e não só no campo da literatura. Quanto mais plurais formos, mais vamos trazer para o campo da literatura um público leitor em busca de novas vozes. Diversidade é experiência. Diversidade é compactuar com a beleza da humanidade, que, como diz Montaigne, é vária, conviver com a diferença de sensações, de afetos tão particulares e assim, universais. A linguagem da diversidade é a linguagem da diferença na igualdade, e da igualdade na diferença. Estamos crescendo, e isso vai ser muito bom para o Brasil. Irá na contramão das polarizações e do sectarismo que tem preocupado o nosso sonho de democracia e nossa república imperfeita.


JC - Na sua opinião, onde se encontram as principais dificuldades para a ampliação do acesso aos livros e a formação de leitores no Brasil?

Lilia Schwarcz – São muitos os gargalos para a ampliação do acesso ao livro e à literatura no Brasil, e mesmo para a formação de leitores. Nossos livros ainda são caros. Precisamos de mais estímulos, por parte do Estado, para que se tornem mais baratos e disponíveis para a população de uma forma geral. Precisamos também de uma distribuição mais ampla e gratuita por parte do governo. Que o Estado compre mais e distribua mais obras para os nossos estudantes e professores — sempre a partir da seleção de profissionais especializados — para que de fato possamos falar de pátria leitora. E precisamos cada vez mais investir numa educação pública universal e de qualidade. Essa é a única maneira de formarmos, não só mais leitores, quantitativamente, mas mais leitores qualitativamente falando – leitores críticos que tenham apreço pela atividade da leitura e vejam no livro um instrumento de emancipação intelectual. Precisamos dar mais capacitação aos professores, essa classe fundamental num país tão desigual como o nosso. Eles e elas contam ainda com salários pouco dignos, e por isso com pouco espaço para investir na sua própria formação. Não é hora de terceirizar a educação e sim de investir com recursos nela. Acredito muito numa educação pública de qualidade, eu que vim da educação pública. Eu me formei em escolas públicas e na universidade pública brasileira.

 

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Bibliotecas contêm livros, e os livros, diversidade - © ElasticComputeFarm/Pixabay


JC - Como a falta de leitura contribui para a permanência das desigualdades ao longo de nossa história? E de modo inverso, como as desigualdades podem impedir ou deixar pedras no caminho do acesso aos livros?

Lilia Schwarcz – O Brasil é, neste momento, o oitavo país mais desigual do mundo. A desigualdade implica em acesso muito desigual à infraestrutura. Estamos falando de brasileiros e brasileiras sem acesso a direitos básicos como água potável, transporte público digno, sistema elétrico, ruas asfaltadas. A desigualdade implica numa imensa diferença de acesso infraestrutural. Mas também desagua no universo da leitura e dos leitores. Se uma pessoa não come de maneira saudável, não vive em condições minimamente confortáveis, não terá espaço para investir na sua própria formação leitora. A desigualdade ataca a democracia. Pesquisas mostram que um país educado, no sentido de receber uma boa e sólida educação pública, é um país menos autoritário, menos polarizado, com mais diálogo e debate. E a literatura faz isso, permite que a gente não só conviva com o diferente. Mas aprenda com a diferença. Que se emocione com vidas muito distintas da sua, que tenha afeto (no sentido de estar afetado) com quem sofre, com quem vive em situações variadas, e com quem se identifique também. Não só entenda, mas que goste da diferença. E que a descoberta do “outro” leve à própria alteração. Essa é a virtuosidade do conceito de alteridade: ninguém vira outro; é seu próprio eu que se altera. A desigualdade cobra um pedágio muito grande, tanto na formação de leitores, como na existência de leitores críticos e cidadãos e cidadãs mais comprometidos com a república brasileira.


JC - As Academias de Letras são instituições cuja missão articula o cultivo da memória e da tradição com a renovação da produção literária e da própria representatividade social em seus quadros. Ao tomar posse na Academia Brasileira de Letras, qual a sua visão sobre esse espaço institucional, e seu potencial de interlocução com outras Academias, nos estados e municípios, e com a sociedade brasileira em geral?

Lilia Schwarcz – Sou uma pessoa que estudei muito as instituições. Acredito na importância delas para a manutenção da democracia, e também para a República, para um espaço republicano de ativismo. Mas acredito, sobretudo, em instituições preparadas para a abertura à pluralidade, à diversidade e ao diálogo. Vivemos um outro momento. O tempo da linguagem dos direitos civis. Nesse sentido, estou apenas chegando na Academia. Assim falo com a humildade dos mais jovens, que precisam aprender, pedir licença. Mas também com o arrocho dos mais jovens que querem mais. No século XIX existia um debate importante entre as diferentes Academias e é o que espero para o XXI. Que as Academias se unam para o bem do Brasil, no sentido de fazer, deste país, um país mais leitor, mais plural também em termos regionais – e sendo assim, muito mais democrático.


JC - Que relação há entre a cultura dos livros e sua democratização com o direito fundamental à memória, que a Sra. define como luta que expressa atitude cidadã e republicana? Como vai essa luta no Brasil, e como os livros podem contribuir?

Lilia Schwarcz – O Brasil é um país que, durante muito tempo, sequestrou a memória de muitos brasileiros e brasileiras. Silenciou a memória de povos indígenas e africanos. Dr. Alberto da Costa e Silva foi uma pessoa que lutou contra esse apagamento, e abriu muitos caminhos nesse sentido. As Academias têm um papel a cumprir, como casas da memória. Mas casas de uma memória que inclua mais, e de espaços numa perspectiva horizontal e não hierarquizara para a riqueza das várias culturas brasileiras. Sempre digo que precisamos lembrar de não esquecer. E que a memória é um direito republicano, que durante muito tempo não foi garantido a todos e a todas as brasileiras.


JC - A literatura e o compartilhamento de ideias podem fazer bom uso das redes sociais, como a Sra. demonstra em seu perfil no Instagram. Qual sua avaliação da experiência no mundo digital? Como fazer com que a comunicação por esses instrumentos leve cada vez mais informação de qualidade, que possa ser vista e difundida por mais gente?

Lilia Schwarcz – Na minha opinião, as redes sociais vieram para ficar. Então é melhor que a gente invada, no bom sentido, as redes sociais, com boa informação. Que a intelectualidade, a Academia, estejam presentes, com o que há de melhor, a divulgação de conhecimento de qualidade, de dados, da história, da literatura. Toda vez que me perguntam se tenho uma opinião, procuro trocar por uma informação.
Por isso, eu não sou uma pessoa que demonizo as redes sociais. Mais do que isso, sou uma pessoa fatalista. Se nos isentarmos das redes sociais, deixaremos de cumprir um papel cidadão da maior relevância. As redes sociais podem ser um espaço de muita polarização, mas podem ser um espaço horizontal, de apresentação de outros livros, de outras produções, e nesse sentido, mais democrático. Tudo depende de como vamos conviver com essa nova forma de comunicação que, ao que tudo indica, veio para ficar. Quem ficar para trás vai deixar de olhar para frente.

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"Imagens da branquitude: A presença da ausência" é seu novo livro - Divulgação


JC - Vem aí novo livro de sua autoria, “Imagens da branquitude: A presença da ausência”. Como a publicação dialoga com o atual momento de sua trajetória, em pleno reconhecimento, e ao mesmo instante no início de sua história na ABL?

Lilia Schwarcz – É um livro que venho fazendo a minha vida inteira. Penso por imagens e com imagens. Elas não são ilustração, no sentido de dar um lustro; são documentos da maior importância que não se comportam apenas como produto. Representam a produção de valores, costumes, concepções arraigadas e naturalizadas pelo costume. São fontes visuais, quase janelas para outros momentos, outros períodos, a despeito de eu saber que arte não é só reflexo. Mas penso a ilustração de forma mais ampla, não só a iconografia artística, mas culturas visuais, que podem incluir folhetos, propagandas, quadros, esculturas, patrimônios, monumentos, enfim, uma possibilidade mais ampla de fontes. Os documentos visuais não são assim apenas “decorrências” de seu momento pois condicionam a nossa sociedade. Vemos por convenções e não livremente. E a nossa sociedade é uma civilização da imagem e da visão. Todavia, nem todo mundo vê. Ou melhor, se ver é uma capacidade biológica, enxergar já é uma decisão cultural e social. Tenho a preocupação de ler imagens, ensinar a ler imagens. E mostrar como as imagens não são inocentes.

 

JC – Como a Sra. enxerga as imagens da branquitude?

Lilia Schwarcz – Venho estudando durante toda a minha carreira acadêmica o fenômeno da branquitude. Eu enxergo esse conceito não como categoria de acusação. Mas como um local social de privilégio simbólico que não se apresenta de maneira normativa, tampouco como autodefinição. Mas impera na prática. A branquitude classifica, mas não é classificada; cria normas mas se acha fora delas. Basta ver que estudamos e racializamos o resto do mundo, e acreditamos que as pessoas brancas não têm raça. Claro que têm, e essa raça foi responsável por produzir mapas e colocar a Europa ao centro. Por produzir alegorias, onde a Europa aparecia como lugar de civilização, e outros como lugares da barbárie. Escrevo um capítulo, por exemplo, sobre as amas de leite, o que significavam em termos de produção da falta de lugar e do anonimato. Há capítulos sobre as teorias e as imagens de branqueamento, sobre como se construiu em telas e na cultura visual a noção enganosa da democracia racial. E como agora vem se produzindo a ideia igualmente enganosa de mérito. E a pergunta, para voltar a minha primeira resposta, é: como um país que é tão desigual pode criar critérios que se pretendem apenas universais? E o livro mostra essa capacidade da cultura de reflexivamente produzir mitos. O da igualdade por exemplo.


JC – A publicação combina com sua entrada na Academia Brasileira de Letras.

Lilia Schwarcz – Foi uma coincidência. Eu não imaginava entrar na ABL neste momento. Vou publicar em agosto o novo livro. Mas, de alguma maneira, ele combina com o que pretendo trazer para a Academia: uma discussão afinada com a intersecção de marcadores de geração, de região, mas também de raça e de gênero. Tudo isso, reconhecendo o imenso papel da Academia Brasileira de Letras, a tremenda importância dessa instituição milenar, e como me sinto honrada de ter sido aceita para esse grupo tão seleto. Preservar e expandir instituições consolidadas como essa é projeto utópico e de grande importância para um país que precisa sonhar em ser, finalmente, uma pátria leitora e que aposta na diversidade.

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