As dores e relatos das vítimas da violência no transporte público
Publicado em 19/03/2017 às 10:19
| Atualizado em 27/03/2017 às 13:03
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Fotos: Diego Nigro/JC Imagem
“NÃO RESTOU NADA. APENAS A PERDA, O VÁCUO”
Não restou nada. Apenas a perda, a ausência e uma imensa luta para tentar manter os assassinos presos e conquistar uma reparação financeira por danos morais e materiais. Essa é a história de vida, pelo menos nos últimos quatro anos, de Antônio Rodrigues da Silva, pai da almoxarife Suany Muniz Rodrigues, executada aos 33 anos por ladrões durante um assalto a ônibus em 2013, na BR-101. A jovem, que dormia na cadeira do coletivo de tanto cansaço após um dia de trabalho, acordou com um revólver na cabeça e aos gritos. Travou de susto e medo, ainda sem entender que acontecia um assalto, mas mesmo assim deu o celular. De nada adiantou. Morreu porque teve medo. O ladrão que pegou o telefone foi até o fundo do ônibus e voltou determinado: deu um tiro à queima-roupa na almoxarife.
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“A princípio, acharam que ele a tinha reconhecido porque trabalharam no mesmo estaleiro em Suape. Mas nada se comprovou. Ele matou minha filha por maldade mesmo, muito doido de drogas”, lembra Antônio. Ao ver a explosão da insegurança nos ônibus, é cético. “O governo do Estado perdeu a luta para a violência. Ninguém se importa com as pessoas que usam o transporte. Todos têm medo e nada muda. Perdi minha filha e não consegui, até agora, nenhum tipo de reparação. Os assassinos estão presos, mas o cumprimento das penas é brando. Em pouco tempo estarão soltos, por aí. Quem sofre somos nós, que ficamos sem nada. Apenas com o vácuo deixado pela perda, impotentes diante da vida”, desabafa.
“DESISTI DE TUDO POR MEDO”
Foram nove assaltos, três deles com o uso da violência, para que a decisão fosse tomada: não trabalharia mais como cobradora. Não tinha mente nem alma para enfrentar tanto medo e pressão. Foi assim que Jaci Braz, 53 anos, abriu mão de 15 anos de experiência como cobradora de ônibus. E não tente falar com ela sobre a possibilidade de voltar ‘para a catraca’, como dizem. De imediato, fica nervosa, suando frio. Jaci tentou. E não foram poucas vezes. Em outubro de 2016 foi a última tentativa. Mas não teve jeito. “Ficava em pânico por qualquer coisa e desmaiava onde estivesse. Trabalhava tensa, sempre atenta às pessoas que entravam no ônibus. Se fosse em grupo, então, o desespero era maior. O trauma foi tão grande que passei a observar os pés dos homens e, quando via um cadarço amarrado com um laço e um nó, achava que era ladrão. Veja a minha situação”, ri de si mesma. A ex-cobradora vive à base de medicamentos e passou a ter medo de tudo, de sair de casa, de andar de ônibus, da vida. Há dois anos está afastada do trabalho, mesmo sem receber salário ou auxílio doença. “Só volto se for para outra função. Na catraca não dá mais”, diz.
As duas jovens que assinam os textos a seguir foram convidadas pelo Blog De Olho no Trânsito para contar, na primeira pessoa, a angústia de passar por um assalto num ônibus. Mais do que apenas relatar o medo diante da possibilidade de até morrer, elas revelam o sentimento de impotência e desesperança que dominam as vítimas quando a vida segue.Confira:
"Assim como outros milhares de pernambucanos, utilizo o transporte público diariamente para me locomover na Região Metropolitana do Recife (RMR). E todos os dias me obrigo a enfrentar o medo e o trauma de subir em um coletivo. Isso porque também integro a parcela crescente de usuários que já foi vítima de assalto enquanto utilizava o ônibus.
Os relatos das constantes investidas de criminosos contra coletivos, por si só, já me deixavam assustada e temerosa, afinal, o transporte público sempre foi meu principal meio de locomoção e a qualquer momento poderia acontecer comigo. E, infelizmente, aconteceu. No fim de fevereiro deste ano, um dia antes do início do “maior Carnaval de rua do mundo”, passei de mera espectadora da violência nos ônibus e me tornei personagem –e vítima– dela. Um coletivo, dois criminosos –um deles com arma em punho– e cerca de 10 passageiros aterrorizados. Eram 14h e a ação levou apenas cinco minutos.
No primeiro momento, o sentimento que fica é de revolta e impotência. Revolta por ver aquilo pelo qual você trabalhou, lutou para conquistar, ir embora em questão de segundos. E impotência por assistir às cenas de violência de forma passiva, sem poder fazer nada para evitar. Porque se ousar fazer ou dizer algo, podem levar seu bem mais precioso: sua vida. O que resta é torcer para que acabe logo.
Quando se passa por uma experiência como essa, o dano vai além do material. Me atrevo a dizer que o prejuízo psicológico é ainda maior. Porque, a partir de então, você não anda mais sozinho. O medo passa a ser companheiro constante. A qualquer sinal de perigo, seu corpo entra em estado de alerta. Os batimentos cardíacos aceleram, as mãos começam a suar e a boca fica seca. A sensação de pânico domina. O simples fato de pensar em pegar um ônibus ou até mesmo sair às ruas causa pavor.
De uma hora para outra, me vi obrigada a mudar minha rotina. Deixei de frequentar alguns locais e evitar determinados trajetos, com o objetivo de reduzir ao máximo o percurso e o tempo dentro de um coletivo. Passei, então, a me privar de um direito básico, fundamental, que todo cidadão deveria ter assegurado: o direito de ir e vir. A sensação de vulnerabilidade, a insegurança e a experiência traumática não me permitem exercê-lo em sua plenitude.
A triste realidade é que o usuário do já sucateado transporte público pernambucano acrescentou – não por vontade própria– mais um desafio à sua batalha diária: pegar um ônibus e não ser alvo de bandidos. Apesar dos constantes relatos de assaltos e do crescente número de ocorrências policiais envolvendo coletivos, a situação não parece estar gerando qualquer tipo de “desconforto” para o poder público. Cercados de seguranças e circulando apenas em veículos oficiais, os gestores de nosso Estado seguem imunes –e aparentemente alheios– ao caos e à violência que assolam o sistema público de transporte. O que se vê são promessas de melhorias e nenhuma medida efetiva. A morosidade dos governantes em reconhecer e apontar saídas para sanar o imbróglio já ultrapassou o limite do aceitável. É urgente que o discurso do transporte público como prioridade saia do papel e seja encarado como um compromisso com a sociedade, que clama por mais segurança. Mas, enquanto o poder público fechar os olhos para o problema, a população continuará refém do medo e à mercê dos criminosos". Valéria Oliveira - estudante de odontologia
"Após ouvir um 'vai com Deus, minha filha' carinhoso da minha avó, saio de casa todos os dias para trabalhar e estudar. Assim como tantos outros pernambucanos, dependo do transporte público e peno com todos os percalços da cidade, que vão desde calçadas esburacas até alagamentos, passando pelo trânsito. Mas nada nos dá mais arrepios que a insegurança e, com as constantes notícias de assaltos à ônibus, quem anda nos coletivos está ainda mais assustado.
Engraçado que a gente sempre tem mais medo da violência durante a noite, ficamos achando que os malfeitores vão sair do meio do escuro e nos pegar de surpresa, que pela falta de luz, ninguém verá por nós. Mas, para minha surpresa, por volta das 15h30 do último de 30 de janeiro, um homem arrumado, de camisa polo e sapatênis, pagou a passagem e passou na catraca como qualquer outro passageiro. No entanto, tão logo o ônibus começou a subir o viaduto Capitão Temudo, ele foi até o cobrador, pegou a renda do coletivo e anunciou o assalto. A bolsinha de mão, que inicialmente me fez pensar que se tratava de um trabalhador, para a minha surpresa e de todos os outros presentes, tinha a função de guardar os celulares e dinheiro roubado.
Com quase todas as cadeiras ocupadas, este único homem armado recolheu os pertences de algo entre 30 e 40 pessoas em cerca de cinco minutos. Nesse curto tempo, ele teve tempo ainda de assustar a todos ao sismar que um passageiro que estava logo ao meu lado era policial. Este, ainda bem, se manteve calmo, com as mãos para cima, repedindo que 'não, sou não, senhor', ao ser acuado. Já próximo da Compesa, o suspeito anunciou que o motorista não brincasse e arrancasse com o veículo assim que ele descesse. Mas, para completar o desespero, o condutor, de tão nervoso que devia estar, deixou o ônibus morrer uma três vezes, antes de partirmos deixando o criminoso e suas ameças para trás.
Já sofri outros dois assaltos, ambos por pessoas de bicicleta e um deles com direito a um revólver apontado para minha cabeça. Dizem que a gente se acostuma com tudo na vida, mas eu discordo. Esses acontecimentos não me tornaram mais corajosa ou mais segura, pelo contrário. Parece que vai juntando tudo e o medo toma conta da sua cabeça. Todos os dias que eu preciso sair de casa é uma luta, só de pensar no caminho já começo a suar. Não me sinto segura para andar pelas ruas e fico tensa durante todo e qualquer percurso de ônibus que tenha de fazer.
Nós, pernambucanos, estamos acuados e nenhuma autoridade, do alto de seus apartamentos cercados de seguranças e carros blindados, parece estar realmente se apressando em tomar alguma atitude. O medo da violência se tornou algo tão comum em nossas vidas, que passamos a implorar por policiamento. Mas não é um favor, não é uma gentileza, garantir a nossa proteção é obrigação do Estado e este precisa começar a fazer seu trabalho de forma efetiva. Cansei de ouvir falar em operação, em plano de ação, eu quero resultados, quero ir ao trabalho sem medo". Giovanna Torreão - jornalista
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