"Com este ambiente absolutamente hostil, as autoridades ainda querem castigar o pedestre? Creio que as pessoas que caminham desrespeitam a sinalização simplesmente para conseguir cumprir seus trajetos porque as calçadas são péssimas, os semáforos de pedestres são muito demorados e as faixas de travessia estão onde menos atrapalham os veículos e não onde é preciso – e mais lógico – atravessar" Meli Malatesta, especialista em mobilidade a péComo ser multado quando se atravessa fora da faixa de pedestre se faltam faixas na grande maioria das vias das cidades brasileiras? Como ser punido por caminhar numa via se faltam calçadas - mesmo que estreitas e ruim, repletas de obstáculos - em todos os lugares? Ou por andar em meio aos carros numa via sem ciclofaixa? Parece injusto. Além disso, como efetuar, na prática, essas novas regras? Enfim, a legislação de trânsito brasileira é conhecida por criar, com uma insistência até constrangedora, factóides que caem no descrédito da sociedade e terminam morrendo de inanição. Talvez essa resolução do Contran seja mais uma. Lembrando que a nova resolução do Contran entra em vigor em abril de 2018 - 180 dias contatos a partir do dia 25/10/2017 - e prevê multa de R$ 44,19 para aqueles pedestres e ciclistas que atravessarem fora da faixa. O valor representa metade do valor de uma multa leve aplicada a motoristas de carro. Aproveito a discussão para relembrar o Especial Multimídia #PELOCAMINHAR, que aborda a importância e o direito à caminhabilidade. Não apenas calçadas, mas arborização, travessias seguras e com prioridade semafórica, e iluminação. Acesse: https://especiais.jconline.ne10.uol.com.br/pelo-caminhar/ Por Meli Malatesta Discretamente, sem qualquer debate público que pudesse gerar polêmicas, o Conselho Nacional de Trânsito (Contran) aprovou nesta quarta-feira (25) a Resolução 706/2017, que estabelece multas para pedestres (e ciclistas) que desrespeitem as normas previstas no Código de Trânsito Brasileiro. Aprovada às pressas, na surdina, a resolução afeta a vida de todas as pessoas, porque todos somos pedestres. Assim, a partir de abril do próximo ano, pelo entendimento do órgão de trânsito nacional, conforme a declaração do diretor do Denatran, você estará sujeito a ser multado caso tenha que sair da calçada e caminhar pela pista porque a calçada é intransitável, cheia de buracos ou desníveis, como ocorre sistematicamente na maioria das cidades brasileiras. Também poderá ser multado se pressentir alguma ameaça em seu caminho e tiver que caminhar pela via, como recomendam os órgãos de segurança pública. Apenas para lembrar: # No Brasil, 66% das viagens diárias são feitas exclusivamente ou complementamente a pé. No entanto, os espaços públicos destinados à mobilidade urbana não acompanham esta proporção e priorizam os veículos e a velocidade; # Pedestres são obrigados a ceder sempre a prioridade ao veículo motorizado. As exceções são raras e confirmam a regra; # Os direitos dos pedestres, previstos pelo Código de Trânsito Brasileiro e pela Política Nacional de Mobilidade, não são colocados em prática pelo poder público; # Motoristas raramente são autuados por infrações contra pedestres. Assim, o desrespeito é sistemático; # O preparo dos motoristas pelos CFCs não é suficiente para garantir a prática dos direitos dos pedestres – mesmo onde há sinalização – sem que haja fiscalização. Na foto, cadeirante pena sem opção de travessia na Avenida Agamenon Magalhães Com este ambiente absolutamente hostil, as autoridades ainda querem castigar o pedestre? Creio que as pessoas que caminham desrespeitam a sinalização simplesmente para conseguir cumprir seus trajetos porque as calçadas são péssimas, os semáforos de pedestres são muito demorados e as faixas de travessia estão onde menos atrapalham os veículos e não onde é preciso – e mais lógico – atravessar. Parece-me que a intenção desta multa “pseudoeducativa” é aniquilar ainda mais o pedestre, apontando a ele “o seu devido lugar” para que não mais atrapalhe o tráfego e “cause prejuízos”. NA CONTRAMÃO Ao confrontarmos as condições do ambiente de caminhada nas cidades brasileiras e da dependência que as cidades têm de políticas que estimulem a caminhada para a sua sobrevivência, esta medida além de ser extremamente iníqua, vem na contramão do que acontece hoje na maior parte do mundo civilizado. Nelas se incentiva a população a deixar o carro em casa, usar o transporte público e pedalar. Tudo para que as cidades fiquem menos poluídas, mas amigáveis e com sua população mais saudável. A resolução é também descabida porque quem anda a pé não passa por processo de habilitação para aprender como se comportar na via, seus direitos e deveres. Assim, autuar uma pessoa que não sabe onde e porque errou, é no mínimo impróprio e injusto. Antes de pensar em penalizar os pedestres, os conselheiros do Contran deveriam buscar a obrigatoriedade da Educação de Trânsito na rede escolar nacional, pelo menos no currículo escolar básico e secundário. Foto: Felipe Ribeiro/JC Imagem Confira, também, o Especial Multimídia #ELESSÓQUERIAMPEDALAR, que fala sobre a dificuldade que a sociedade e a polícia ainda têm de ver o atropelamento de ciclistas como crime. Outra minoria nas ruas e que também será atingida pela nova resolução do Contran. Acesse: https://especiais.jconline.ne10.uol.com.br/elessoqueriampedalar/ Recomendo que os responsáveis que prepararam, aprovaram e pretendem colocar em prática a Resolução 706 reflitam bem sobre o que isto significa. É claro que todo comportamento inadequado e irregular merece ser punido quando não tem justificativa. Mas, neste momento, as autuações de infrações relativas à mobilidade a pé são prematuras e certamente não conseguirão os resultados pretendidos. Meli Malatesta é arquiteta e urbanista formada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e com mestrado e doutorado pela FAU USP. SAIBA MAIS SOBRE AS NOVAS REGRAS A resolução prevê que cada autoridade de trânsito do País (municípios ou Estados, no caso das rodovias, ou mesmo a Polícia Rodoviária Federal) deverá elaborar seu próprio modelo de autuação. Também será solicitado o endereço do infrator, mas a informação não será obrigatória para a anotação da infração. No Recife, por exemplo, a fiscalização será responsabilidade da Autarquia de Trânsito e Transporte Urbano do Recife (CTTU). O texto federal prevê que o pedestre ou ciclista autuado terá de ser identificado, com o preenchimento obrigatório do nome e dos dados de um documento, além da identificação do agente responsável por aplicar a multa. No caso dos ciclistas, além da multa de R$ 130,16, há previsão de anotação de dados da bike e do número de identificação, “sempre que possível”, segundo a resolução. O texto não esclarece como será feita a cobrança da infração - algo que também ficará a cargo das autoridades locais de trânsito. Fazem parte das infrações passíveis de punição atravessar fora de passarelas, transitar em túneis e viadutos (salvo em locais onde há permissão para o trânsito de pedestres). Já os ciclistas serão autuados se conduzir "onde não seja permitida a circulação" ou guiar "de forma agressiva", segundo nota do Departamento Nacional de Trânsito (Denatran). Exemplo de dificuldade de travessia na Avenida Norte. Nem um canteiro é disponibilizado ao pedestre, que se espreme entre os gelos-baianos
Mobilidade
Por Roberta SoaresNotícias e análises sobre transporte público, transporte individual, micromobilidade e soluções para a mobilidade urbana