Crimes que ainda doem e indignam menos

Publicado em 02/12/2017 às 18:00 | Atualizado em 13/11/2020 às 13:40
Fotos: Felipe Ribeiro/JC Imagem
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Tragédia da Tamarineira foi mais uma. E, apesar dos variados sinais de imprudência, motorista que provocou colisão não foi autuado por avanço de semáforo e excesso de velocidade. Apenas por alcoolemia. Foto: Felipe Ribeiro/JC Imagem   Matar no trânsito ainda choca menos. Indigna menos. Permanece sendo visto como um crime menor, com menos punição. Não carrega em si o peso, por exemplo, da morte provocada por arma de fogo, faca, sempre intencional, da morte matada. A morte no trânsito, ao contrário, têm a complacência da sociedade. Para muitos, é morte morrida. Ainda. Apesar da comoção, inclusive nacional, que a tragédia da Tamarineira promoveu – quando um motorista embriagado e em alta velocidade avançou o sinal e destruiu a família do advogado Miguel Arruda da Mota Silveira Filho –, as punições para esses crimes são poucas, cercadas de dúvidas e, quando acontecem, demoram tempo demais, tornando-se brandas.

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Não autuar João Victor por avanço de semáforo e excesso de velocidade é um grande equívoco. A perícia vai comprovar que o motorista da Tamarineira estava em alta velocidade e que avançou o semáforo, até porque câmeras já mostraram isso, e os órgãos de trânsito não podem autuá-lo. É o momento de refletirmos sobre a necessidade de alterar a legislação porque, do jeito que está, estamos produzindo mais e mais Joões Victor e permitindo que circulem nas ruas", Antônio Carlos Cavendish, corregedor do Detran-PE

 

     

Em Pernambuco, isso é realidade, comprovada por números. Em três casos de assassinatos ao volante, julgados assim pela Justiça e com grande repercussão no Estado, os motoristas seguem sem qualquer mancha nas CNHs. São condutores, até agora, aptos a dirigir pelas ruas. Até mesmo no caso de João Victor Ribeiro de Oliveira Leal, o motorista da colisão da Tamarineira, a punição não aconteceu como deveria. O estudante de engenharia foi autuado pela CTTU apenas pelo crime de alcoolemia. A inconsequência do avanço de semáforo e da louca velocidade desenvolvida no Fusion que dirigia naquela noite não viraram multas.

Infelizmente, é o que acontece. São 48 horas para registrar o auto de infração. Depois, não vale mais. Por isso, a punição administrativa com multa, que poderia resultar na suspensão do direito de dirigir, deixa de existir. Fica tudo dependendo da decisão da Justiça, quando ela é feita. Cabe ao juiz decidir se suspende ou não a CNH daquele condutor”, Simíramis Queiroz, presidente do Conselho Estadual de Trânsito de Pernambuco (Cetran-PE)

  Pedro Henrique Machado Villacorta, o motorista que já foi denunciado por duplo homicídio doloso (por dolo eventual – quando não se quer matar, mas se assume o risco) pelo MPPE por atropelar e esmagar sobre a calçada o casal de amigos Isabela Cristina e Adriano Francisco dos Santos, em agosto de 2016, em Boa Viagem, não tem uma única multa pelas infrações de trânsito que embasaram o seu indiciamento pela polícia e a denúncia pelo MPPE: dirigir sob efeito de álcool (segundo atestado médico) e excesso de velocidade (segundo a perícia do Instituto de Criminalística). Tem um histórico péssimo, com 120 pontos vencidos na CNH e uma coleção de infrações como avanço de semáforo, mas nada associado ao crime que responde judicialmente.

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Motorista que atropelou casal em Boa Viagem vai a júri popular. Mas foi por pouco Jerrar ficará seis anos sem permissão para dirigir. Essa é a principal punição Outro caso famoso, o do universitário Alisson Jerrar Zacarias dos Santos, que em 2008 também avançou o sinal depois de beber a noite inteira numa boate, matando violentamente a auxiliar de enfermagem Aurinete Gomes, ferindo gravemente o marido dela, Wellington Evangelista e a filha, na época com sete anos, segue a mesma sina. Mesmo condenado por homicídio doloso (também dolo eventual) pela Justiça, não tem um único impedimento na CNH para que esteja dirigindo até hoje. Há, apenas, uma referência ao processo judicial que ele responde. Na condenação, ocorrida em 2014, o Tribunal do Júri determinou a suspensão do direito de dirigir por seis anos, mas ela ainda não aconteceu na prática porque a defesa de Jerrar segue recorrendo da sentença. É mais um condutor apto a dirigir.

“Isso é um grande equívoco. A perícia vai comprovar que o motorista da Tamarineira estava em alta velocidade e que avançou o semáforo, até porque câmeras já mostraram isso, e os órgãos de trânsito não podem autuá-lo. É o momento de refletirmos sobre a necessidade de alterar a legislação porque, do jeito que está, estamos produzindo mais e mais Joões Victor e permitindo que circulem nas ruas. O mesmo vale para as multas acumulados nos veículos. Como é permitido que um automóvel com 13, 100 ou 100 mil multas, desde que cometidas no prazo de um ano, possa rodar livremente? Isso precisa mudar”, defende o corregedor do Detran-PE, Antônio Carlos Cavendish.  

Família destruída por causa da imprudência de um jovem ao volante. Até quando será assim?   E, pela legislação de trânsito, a CTTU está certa ao não autuar o condutor que provocou a tragédia da Tamarineira. Legalmente, não poderia. São infrações que precisam ser vistas, pelos olhos do agente de trânsito ou da tecnologia aferida para isso. É o que diz a Resolução 471, do Conselho Nacional de Trânsito (Contran). “Infelizmente, é o que acontece. São 48 horas para registrar o auto de infração. Depois, não vale mais. Por isso, a punição administrativa com multa, que poderia resultar na suspensão do direito de dirigir, deixa de existir. Fica tudo dependendo da decisão da Justiça, quando ela é feita. Cabe ao juiz decidir se suspende ou não a CNH daquele condutor”, lamenta a presidente do Conselho Estadual de Trânsito de Pernambuco (Cetran-PE), Simíramis Queiroz. Essas brechas e falhas da legislação de trânsito, que permitem interpretações diferentes, limitam e burocratizam o passo a passo para a punição de assassinos ao volante, seguem alimentando a impunidade na prática. Vejamos os resultados da Operação Lei Seca. Embora seja um sucesso em Pernambuco, com números impressionantes de abordagens e, de fato, temida por muitos motoristas, a punição fica a desejar. Fiscalizamos, mas não punimos.

Hoje não temos uma legislação que diga: bebeu, dirigiu e matou é um crime doloso (com intenção), com pena prevista de 20 anos de prisão, por exemplo. É disso que precisamos”, Antônio Carlos Cavendish, corregedor do Detran-PE

Enquanto a Operação Lei Seca multou quase 40 mil motoristas em seis anos, os órgãos de trânsito só conseguiram suspender 3 mil CNHs no Estado no mesmo período – menos de 8% do total. O tempo que está se levando em Pernambuco no processo de suspensão da permissão de dirigir é de quatro anos. Um período longo demais, que deseduca o condutor-infrator. Faltam fôlego e estrutura ao órgão – assim como ao DER, Dnit, CTTU e outras autarquias de trânsito municipais – para dar conta da quantidade de processos que chegam às Jaris (Juntas Administrativas de Recursos de Infrações), estruturas que têm poucos funcionários e são menosprezadas pelo poder público.  

A babá Roseane Souza, uma das vítimas, estava grávida de três meses

AO SABOR DAS INTERPRETAÇÕES

Como se não bastasse, a punição criminal para quem mata no trânsito sob efeito de álcool e com excesso de velocidade também é imprevisível. Por causa das brechas da legislação de trânsito, a tipificação dos crimes continua dependendo de interpretações do delegado que indicia, do promotor de Justiça que denuncia e do juiz que condena. “Hoje não temos uma legislação que diga: bebeu, dirigiu e matou é um crime doloso (com intenção), com pena prevista de 20 anos de prisão, por exemplo. É disso que precisamos”, argumenta o corregedor do Detran-PE.       “Também temos que brigar por delegacias e varas judiciais específicas para tratar os crimes de trânsito nas cidades. Só assim eles serão vistos e punidos de outra forma. Enquanto permanecerem misturados a outros crimes, como os homicídios por arma de fogo, por exemplo, ficarão em segundo plano”, argumenta José Aurélio Ramalho, presidente do Observatório Nacional de Segurança Viária (ONSV), ONG que atua no combate à violência no trânsito. Pedro Henrique Machado Villacorta, por exemplo, por pouco não escapa do julgamento por homicídio doloso. O juiz do caso desclassificou o crime para culposo, mesmo o MPPE tendo denunciado por dolo eventual. Mas o TJPE manteve a denúncia dos promotores. Alisson Jerrar, para citar mais um caso, foi condenado, após seis anos do crime, ao regime semiaberto porque o Júri entendeu que ele tinha bons antecedentes. Outro caso emblemático e que reflete a insegurança jurídica que cerca os crimes de trânsito foi o atropelamento do aposentado João Rufino de Sá, 76 anos, em janeiro de 2007, surpreendido quando caminhava na calçada em Casa Forte, na Zona Norte do Recife. “O motorista que matou o meu pai, o universitário Felipe Rabello Emery, estava tão bêbado que foi encontrado pela polícia dormindo ao volante, ao lado do corpo estirado na calçada. Na época, não existia a Lei Seca e todas as mudanças promovidas na legislação de trânsito a partir dela. Por isso ele foi levado para a delegacia, pagou uma fiança de R$ 900 e, em seguida, ganhou a liberdade. Foi indiciado e julgado por homicídio culposo (sem intenção) e nem a pena alternativa chegou a pagar porque a defesa alegou que o crime tinha prescrito na época do cumprimento. O advogado que defendeu o motorista na época, argumentando que não era um homicídio intencional, é o mesmo que hoje defende a família destruída na tragédia da Tamarineira. Agora, ele entende ser um assassinato. Isso é revoltante”, grita a filha do aposentado, Rosemary Costa de Sá, que transformou dor e indignação no Movimento de Combate à Impunidade nos Crimes de Trânsito e segue lutando, como pode, por punições mais severas e por um olhar mais duro, menos benevolente, da sociedade para os crimes de trânsito.


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