Sem direito à travessia nas ruas - a difícil luta pelo caminhar

Publicado em 20/05/2018 às 12:00 | Atualizado em 08/08/2018 às 11:02
Foto: Sérgio Bernardo/JC Imagem
A intervenção faz parte do projeto Calçada Legal, que prevê a recuperação de mais de 100 quilômetros de calçadas da cidade - FOTO: Foto: Sérgio Bernardo/JC Imagem
Leitura:
  Os pedestres continuam na desvantagem quando se trata da travessia. O cálculo para os carros é bem diferente do aplicado para o caminhar. Fotos: Sérgio Bernardo A histórica inferioridade que cerca o caminhar vai além das calçadas – raras e quase sempre de péssima qualidade. É na travessia de avenidas e ruas que ela explode em evidência. Se o pedestre grita há anos por mais espaço para se locomover, ao atravessar as vias ele tem direito ao mínimo. Ao mínimo mesmo. E tudo dentro da lei, o que mais choca. O tempo que é dado à travessia considerada segura pela legislação é, sempre, calculado a partir do tráfego de veículos. De forma que menos o incomode. Cabe ao pedestre se adequar a esse cálculo. Ou se arriscar, o que é comum – não é à toa que os atropelamentos são a segunda causa de mortes no trânsito brasileiro.
Ao pedestre está condicionado o ‘desde que...’. Ou seja, é dada a prioridade a quem caminha desde que não atrapalhe o automóvel. Colocam o pedestre para esperar 120 segundos até iniciar uma travessia semaforizada e, depois de todo esse tempo, oferecem 12 segundos, 15 segundos, no máximo 20 segundos para que faça a travessia. E é a mesma regra quando há um grande volume de pessoas para atravessar ou apenas dez. Onde está a prioridade? Só no CTB (Código de Trânsito Brasileiro). Porque na prática não existe. A legislação sempre favorece o motorista”, Meli Malatesta, referência em mobilidade a pé no Brasil
De forma geral, as regras são bem distintas para as duas “classes” – vamos chamar assim. Quando se calcula o tempo de verde semafórico para os veículos, a contagem considera a quantidade de veículos que passam naquele ponto. Mas quando o cálculo é para definir o tempo destinado à travessia de pedestres, o número de pessoas que atravessam ali não é contabilizado. A contagem é pelo tempo que o caminhante leva para percorrer a distância de um ponto a outro da via. Simples e injusto assim. O resultado são longos tempos de espera para iniciar uma travessia e picos de susto nos pedestres quando atravessam avenidas – especialmente entre as pessoas com mobilidade reduzida. E o que incomoda mais: desestimula o caminhar, a mobilidade a pé. As pessoas passam a resistir, cada vez mais, a caminhar pela cidade.
“Gera uma submobilidade para o pedestre. Caminhar nas ruas das cidades nos obriga a enfrentarmos diariamente várias travessias em cruzamentos e interseções que se repetem a cada cem ou duzentos metros, em média. Isto significa, para um percurso cotidiano a pé de 15 minutos, de oito a dez travessias. Ao voltarmos, este número duplica. Atravessar ruas são momentos muito importantes em nossa vida: é a hora da negociação da utilização do espaço e do tempo urbanos (das ruas e avenidas) com os usuários das outras formas de mobilidade, majoritariamente a mobilidade motorizada: automóveis, motos, ônibus, caminhões, utilitários”, alerta Meli Malatesta, arquiteta e urbanista referência em mobilidade a pé no Brasil e presidente da Comissão Técnica de Mobilidade a Pé e Acessibilidade da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP). Pelo Manual Brasileiro de Sinalização de Trânsito, elaborado pelo Conselho Nacional de Trânsito (Contran) – autoridade máxima do País no setor –, o cálculo é feito da seguinte forma: se divide a largura da rua pela velocidade desenvolvida pelo pedestre para chegar ao outro lado da rua. O problema é que a velocidade determinada – 1,2 metro por segundo (m/s) – é estimada em cálculos americanos e não representa a realidade da maioria da população brasileira, seja pelo biotipo ou porque ela fica mais velha a cada dia. “Ao pedestre está condicionado o ‘desde que...’. Ou seja, é dada a prioridade a quem caminha desde que não atrapalhe o automóvel. Colocam o pedestre para esperar 120 segundos até iniciar uma travessia semaforizada e, depois de todo esse tempo, oferecem 12 segundos, 15 segundos, no máximo 20 segundos para que faça a travessia. E é a mesma regra quando há um grande volume de pessoas para atravessar ou apenas dez. Onde está a prioridade? Só no CTB (Código de Trânsito Brasileiro). Porque na prática não existe. A legislação sempre favorece o motorista”, critica Meli Malatesta. A especialista lembra a questão do acelerado processo de envelhecimento da população diante da frieza e exatidão dos cálculos do Contran para definir a velocidade de deslocamento dos pedestres. “Há estudos que já comprovaram que 1,2 metro por segundo é muito rápido para a maioria das pessoas. Que a maioria tem como média de velocidade a metade disso”, alerta. A referência de Meli Malatesta é um estudo realizado, em 2017, por uma fisioterapeuta e doutoranda e um professor do departamento de epidemiologia da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), publicado no Journal of Transport & Health, que fez essa constatação. Eles analisaram a velocidade de 1.191 idosos da cidade de São Paulo e qual a proporção de indivíduos que conseguiam caminhar com velocidade igual ou superior à estipulada pela CET, a CTTU paulista: 1,2 metro por segundo e, em alguns casos, 1,4 metro por segundo. Os resultados foram alarmantes. A velocidade constatada foi de 0,75 metros por segundo. Ou seja, 97,8% dos idosos não conseguem caminhar a 4,3 km/h, velocidade exigida pela CET para os semáforos da cidade. Na média, a velocidade alcançada pelos voluntários com mais de 60 anos que participaram do estudo foi bem menor que o exigido: apenas 2,7 km/h. No Recife, por exemplo, vias como as Avenidas Agamenon Magalhães, Boa Viagem e Mascarenhas de Moraes têm, no máximo, 20 segundos de tempo verde para a travessia dos pedestres. Na Mascarenhas de Moraes, por exemplo, uma via de intenso tráfego de veículos, é usado o padrão do manual, de 1,2 metro por segundo, dando 20 segundos para as pessoas atravessarem. Já na Agamenon Magalhães, na altura do Hospital Real Português, onde o volume de pedestres é grande, o caminhar ganha um pouco mais de vez. É considerado que o pedestre leva 0,8 metro por segundo para percorrer a rua e, por isso, ele ganha 15 segundos para atravessar. Já na Avenida Boa Viagem, o tempo é menor. São 12 segundos para a travessia em todos os semáforos da via, considerando que as pessoas levam 1 segundo para percorrer um metro. Por sorte, a Companhia de Trânsito e Transporte Urbano do Recife (CTTU) não se limita à velocidade do Manual de Sinalização de Trânsito. Além da largura da via, a CTTU acrescenta uma margem de segurança para conclusão da travessia de 50% do tempo definido, o que aumenta o período para o pedestre atravessar. Além disso, reduz até para 0,8 metro por segundo a velocidade estimada do pedestre de acordo com a área onde o equipamento será instalado (escolas, hospitais, comércio, por exemplo). Em algumas travessias da cidade é dado o tempo de 20 segundos e, muito pontualmente, como no cruzamento da Avenida Conde da Boa Vista com a Rua Sete de Setembro, no Centro, chega a 25 segundos para atravessar. Mas é o máximo que o pedestre consegue. Além disso, não existe, por exemplo, uma distância mínima para que travessias de ruas e avenidas sejam implantadas, como acontece com a localização das paradas de ônibus, que precisam estar a pelo menos 500 metros uma da outra. Para o caminhar, não vale a mesma regra.

Últimas notícias