Até 40% das mortes no trânsito do Recife acontecem quando a fiscalização eletrônica está desligada

Publicado em 01/11/2019 às 8:13 | Atualizado em 08/05/2020 às 15:45
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Fiscalização eletrônica desligada, mais mortes no trânsito. É o que mostra a estatistíca da CTTU. Foto: Brenda Alcântara/JC Imagem  

A sanção na semana passada pelo Executivo municipal da Lei 18.643/2019, que muita polêmica criou ao ampliar em 1h a não autuação dos avanços de semáforos à noite no Recife, além de consolidar o desligamento dos equipamentos de fiscalização eletrônica determinado pela Justiça de Pernambuco desde 2006, reforça a preocupação em relação à segurança viária da cidade. E não é para menos. Estatísticas da própria Prefeitura do Recife mostram que há razões de sobra para que toda a sociedade não só critique a não autuação noturna, mas exija que a determinação judicial seja revista. Atualmente, o horário das 22h às 5h – quando todos os equipamentos eletrônicos, inclusive os que controlam o excesso de velocidade, deixam de multar – responde por até 40% de todas as mortes provocadas por colisões e atropelamentos na cidade nos últimos três anos.

É à noite quando as pessoas ainda mais bebem e dirigem, quando muita gente está saindo das faculdades, por exemplo. É quando acontecem os acidentes fatais e as lesões graves. Mesmo que, como diz a lei, o condutor esteja respeitando a velocidade da via. Uma colisão a 40 km/h significa 80 km/h porque é preciso somar as duas forças. É claro que nós temos um problema de segurança pública, mas ele não pode ser resolvido assim. A pergunta que precisa ser feita é: o Estado vai pagar quando houver a colisão?”, critica o presidente do Observatório Nacional de Segurança Viária (ONSV), José Ramalho

Para alarmar ainda mais, é importante destacar que esses registros são feitos quando a frota circulante de veículos tem uma redução de 60%. Os dados comprovam o que estudiosos da segurança viária alardeiam há anos no País: que a fiscalização eletrônica de velocidade e de avanço de semáforos é ainda mais importante à noite porque é nesse turno quando o condutor mais acelera e ainda arrisca misturar bebida e direção. “Exatamente. É à noite quando as pessoas ainda mais bebem e dirigem, quando muita gente está saindo das faculdades, por exemplo. É quando acontecem os acidentes fatais e as lesões graves. Mesmo que, como diz a lei, o condutor esteja respeitando a velocidade da via. Uma colisão a 40 km/h significa 80 km/h porque é preciso somar as duas forças. É claro que nós temos um problema de segurança pública, mas ele não pode ser resolvido assim. A pergunta que precisa ser feita é: o Estado vai pagar quando houver a colisão?”, critica o presidente do Observatório Nacional de Segurança Viária (ONSV), José Ramalho. Imprudência de jovens ao volante provocou uma forte colisão na Avenida Boa Viagem, em Boa Viagem, na Zona Sul do Recife. Excesso de velocidade é visível e episódio aconteceu por volta das  3h. Confira o vídeo:

“Isso é um retrocesso imenso. É um crime. Não poderíamos estar com essa fiscalização eletrônica sem autuar até hoje e, ainda mais, ter um vereador que proponha ampliar esse horário com uma legislação. Enquanto o mundo adota e estuda a visão 0, de não tolerar uma única morte no trânsito, nós andamos para trás. Das 22h às 5h é o horário quando as pessoas estão mais vulneráveis. É absurdo demais”, critica Oswaldo Lima Neto, doutor em transporte urbano e professor da Universidade Federal de Pernambuco.  

Isso é um retrocesso imenso. É um crime. Não poderíamos estar com essa fiscalização eletrônica sem autuar até hoje e, ainda mais, ter um vereador que proponha ampliar esse horário com uma legislação. Enquanto o mundo adota e estuda a visão 0, de não tolerar uma única morte no trânsito, nós andamos para trás. Das 22h às 5h é o horário quando as pessoas estão mais vulneráveis. É absurdo demais”, critica Oswaldo Lima Neto, doutor em transporte urbano e professor da Universidade Federal de Pernambuco

   

O alerta feito pelo professor se confirma nos números da Autarquia de Trânsito e Transporte Urbano do Recife (CTTU), órgão responsável por atender à determinação de não autuação das infrações de trânsito pelos equipamentos eletrônicos no período noturno. Em 2018, o percentual de fatalidade nos acidentes de trânsito registrados no horário das 22h às 5h foi de 28% quando comparado com o restante do dia em que a fiscalização eletrônica está autuando. Em 2017 esse percentual chegou a 40%. E em 2016 alcançou 30% de todas as colisões e atropelamentos registrados no Recife. “Soluções como essa adotada no Recife já foram tentadas em outras cidades, principalmente por vereadores, mas sempre revertidas. Não conheço uma cidade no Brasil que desative a fiscalização eletrônica à noite, ainda mais a de avanço de semáforo. Não se pode querer resolver o problema da segurança pública comprometendo a segurança viária. Estamos falando de um País onde o trânsito mata 40 mil pessoas e lesiona 350 mil por ano. Quando você deixa de autuar à noite cria uma situação de vale tudo para alguns condutores”, alerta o presidente da Associação Brasileira das Empresas de Engenharia de Trânsito (Abeetrans), Sílvio Médici.

 

Quando a comparação é feita em relação aos acidentes em geral, a proporção de registros no horário noturno é menor. Mas quando se analisa aqueles episódios que fizeram vítimas – fatais ou não –, os números assustam. Dos 27 acidentes que provocaram mortes em 2018, segundo a CTTU, sete aconteceram quando a fiscalização estava sem autuar. Em 2017, dos 35 registros fatais, 14 foram das 22h às 5h. E, em 2016, das 39 mortes, 12 aconteceram à noite, quando os equipamentos não autuavam. No caso dos acidentes com feridos – que não levaram a óbito –, os dados seguem impressionando. Em 2018, por exemplo, dos 2.029 acidentes com vítimas, 205 foram registrados quando a fiscalização estava sem autuar. Comparando os três anos – 2016, 2017 e 2018 – percebe-se que praticamente não há redução nas ocorrências.  

 

 

HISTÓRICO

Já são 13 anos que o Recife não autua as infrações de trânsito por equipamentos de fiscalização eletrônica à noite. Em 2006, o juiz José Marcelon Luiz e Silva, então na 1ª Vara da Fazenda Pública da Capital, determinou o desligamento dos equipamentos de fiscalização eletrônica (na época eram apenas os bandeirões, chamados de lombadas) no horário das 22h às 5h do dia seguinte. O magistrado foi favorável a uma ação civil pública do MPPE, que teve como autora a promotora Andréa Nunes.

 

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  Na época, existiam apenas três equipamentos na cidade (Cabanga, Avenida Alfredo Lisboa e Abdias de Carvalho) e o argumento do MPPE era de que havia um aumento no número de assaltos nessas áreas. Embora os registros não fossem, comprovadamente, nos pontos onde havia a fiscalização eletrônica. A CTTU recorreu até onde foi possível, mas em 2012 a apelação foi julgada pela 2ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE), que confirmou a sentença de 1º grau. E, em 2013, a decisão transitou em julgado, ou seja, não cabia mais recursos para modificação da sentença.

Em 2016, o JC fez uma reportagem também utilizando os dados do Centro de Controle Operacional da CTTU e o perigo já estava lá. CONFIRA

O tema voltou a ganhar destaque quando, numa sanção meteórica, o vice-prefeito do Recife, Luciano Siqueira, respondendo em exercício pela gestão municipal, sancionou a Lei 18.643/2019, cujo projeto de lei foi de autoria do vereador Carlos Gueiros (PSB) – que se limitou a apenas alterar o Artigo 1º da Lei 16.900/2003 e ampliando o horário de não autuação em uma hora.  

Soluções como essa adotada no Recife já foram tentadas em outras cidades, principalmente por vereadores, mas sempre revertidas. Não conheço uma cidade no Brasil que desative a fiscalização eletrônica à noite, ainda mais a de avanço de semáforo. Não se pode querer resolver o problema da segurança pública comprometendo a segurança viária. Estamos falando de um País onde o trânsito mata 40 mil pessoas e lesiona 350 mil por ano. Quando você deixa de autuar à noite cria uma situação de vale tudo para alguns condutores”, alerta o presidente da Associação Brasileira das Empresas de Engenharia de Trânsito (Abeetrans), Sílvio Médici

     

Ninguém da Prefeitura do Recife foi disponibilizado para dar entrevista e comentar a sanção da nova lei e os números da CTTU. Por nota, a autarquia de trânsito se limitou a dizer que a nova lei acompanhou a decisão judicial de 2006. E destacou que a atual gestão do trânsito do Recife sempre pautou os seus projetos focando na diminuição de acidentes em todos os modais, que chegaram a retroceder em 53% entre 2012 e 2018. O vereador Carlos Gueiros foi procurado pela reportagem, mas não retornou.

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