Os viciados em celular são os novos motoristas bêbados no trânsito. Situação está fora de controle. Fotos: Bobby Fabisak/JC Imagem
O lema “se beber não dirija”, disseminado no trânsito do País pela já consolidada operação Lei Seca, deveria ser substituído, nos tempos atuais, por “se dirigir, não use o celular”. Os smartphones viraram a grande praga da segurança viária no Brasil, da qual a grande maioria das pessoas não consegue se libertar quando senta ao volante. Não só os motoristas e entregadores de aplicativos – que já adotaram como padrão a exposição dos aparelhos nos painéis dos carros, motos e até guidons das bicicletas –, mas os condutores em geral. Estudos sobre direção distraída mostram que há verdadeiros viciados em smartphones, indivíduos hiperconectados que têm um padrão de comportamento distraído e o reproduzem na direção de um veículo – situação bem mais perigosa do que o simples uso de um smartphone em casa ou na praia.
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Os viciados em smartphones ao volante são considerados os novos motoristas bêbados. Talvez até mais perigosos que eles porque a frequência com que se dirige com o celular ao lado é infinitamente maior do que a mistura álcool e direção. Segundo a Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet), o uso de celular na direção já é a terceira maior causa de mortes de trânsito no Brasil, combinação que só perde em números de fatalidades para o excesso de velocidade e o alcoolismo ao volante. “Para se ter ideia do perigo que é usar ou manusear o celular ao dirigir, nossas pesquisas e testes mostram que o condutor leva 9 segundos entre perceber que o celular está tocando ou vibrando, verificar o que está acontecendo e decidir atender ou manusear o aparelho. Se o veículo estiver desenvolvendo 60 km/h, por exemplo, é como se o motorista dirigisse por 300 metros sem perceber o que acontece ao redor. E não estamos, sequer, falando em responder a mensagem ou a ligação. Percebe o perigo?”, ensina e indaga o diretor científico da Abramet, Ricardo Hegele.
O perigo se confirma nas estatísticas. Também segundo a Abramet, usar ou manusear celular enquanto dirige aumenta em 400% o risco de acidentes de trânsito. Em Pernambuco, houve uma explosão das autuações dessa infração no trânsito desde 2016, quando dirigir usando ou manuseando o celular deixou de ser uma infração média e passou a ser considerada gravíssima pelo Código de Trânsito Brasileiro (CTB). Alteração, vale ressaltar, feita exatamente por causa do crescimento de acidentes relacionados à desatenção dos condutores. De 2016 para 2019 o número de autuações no Estado cresceu quase 20 vezes mais, segundo dados do Detran-PE. As infrações por manuseio de celular pularam de 4.204 para 82.082 registros, passando do 34º para o 4º lugar no ranking de infrações mais cometidas no Estado. “O crescimento é assustador e algo precisa ser feito. E estamos falando de uma infração que é notificada apenas pelo agente de trânsito. A fiscalização eletrônica, inclusive o videomonitoramento, não pode fazer o registro. Os números assustam. O uso e manuseio de celular é a principal causa das pequenas colisões, por exemplo”, alerta o diretor de Fiscalização do Detran-PE, Sérgio Lins.
Uso do celular aumenta em até 400% as chances de um acidente de trânsito, segundo a Abramet Fazendo um recorte apenas do Recife, o abuso dos motoristas com o celular segue o mesmo ritmo do Estado. Segundo a Autarquia de Trânsito e Transporte Urbano (CTTU), o ato de dirigir segurando o telefone celular foi a terceira infração mais cometida em 2018, com uma média de 5 mil ocorrências mensais. Até 2019, essa continua sendo a terceira infração mais cometida, com uma média mensal de 5.800 ocorrências. “É preciso investir em fiscalização e educação. A alteração do CTB, incluindo o manuseio e transformando a infração em gravíssima foi um importante passo, mas é preciso ter mais fiscalização porque os motoristas estão condicionados e mexer no telefone enquanto dirigem. Observe, por exemplo, quando os veículos param num semáforo. Verifique quantos condutores pegam seus smartphones”, alerta o presidente da Abramet, Juarez Molinari. Diante do cenário assustador e a perspectiva de ele se tornar ainda pior, a entidade está finalizando estudos para definir uma diretriz sobre o tema.
“O certo são as pessoas, ao entrar no carro, colocarem o celular no modo avião. Esquecê-lo. Não é à toa que já existem montadoras que estão produzindo veículos que têm bloqueadores de celulares dos motoristas. Enquanto o veículo estiver em movimento, o celular não recebe ligação ou mensagem. A tecnologia a favor da segurança é a tendência e a solução. E, atrelado a ela, a educação. Não vamos mudar o condutor adulto, mas conseguimos a conscientização das crianças, os motoristas do futuro”, ensina Ricardo Hegele.
Na Austrália, está em teste câmera que capta quando o motorista pega o celular
TECNOLOGIA PARA INIBIR OS ABUSOS COM OS SMARTPHONES
Enquanto o Brasil limita a autuação das infrações de uso e manuseio de celulares aos agentes de trânsito, o mundo avança no combate a esse mal tendo a tecnologia como parceira. O estado australiano de Nova Gales do Sul está usando a tecnologia de Inteligência Artificial nos radares para identificar motoristas que estão utilizando dispositivos móveis enquanto dirigem. São 45 câmeras de alta definição portáteis que contam com uma tecnologia capaz de detectar comportamentos ao volante considerados não-usuais (como segurar um celular).
A partir daí, o processo é semelhante ao videomonitoramento: as informações do possível flagrante serão encaminhadas para um agente de trânsito, devidamente autorizado, para que ele confira as imagens e decida se transforma o registro ou não em notificação. E, acreditem: o departamento de segurança de tráfego australiano não vai, sequer, informar aos motoristas as vias que serão monitoradas por essas câmeras. E mais: o sistema é capaz de realizar a detecção em qualquer condição climática, ou seja, mesmo sob forte chuva.
A decisão de instalar as novas câmeras foi tomada depois de testes realizados que confirmaram o uso abusivo de celulares pelos condutores. Com apenas duas câmeras em operação, foram identificados mais de 100 mil motoristas manuseando os smartphones em um período de seis meses. Os novos radares custarão mais de R$ 250 milhões e, apesar do alto custo, a estimativa é de que possam reduzir as mortes no trânsito em até 30% nos próximos dois anos.