Iniciamos um mês-símbolo da mobilidade urbana. Setembro é, desde meados dos anos 2000, o mês em que o Brasil olha um pouco mais para as consequências e necessidades do deslocamento das pessoas, das cidades. Surgiu a partir do Dia Mundial Sem Carro, criado sob inspiração da semana europeia de mobilidade, criada na França, em 1997. Efetivamente, pouco se avançou em todos esses anos. O mês da mobilidade funciona mais no discurso e em ações folclóricas do poder público, do que na prática. Mas mesmo assim, seguimos insistindo nele. Para que setembro seja um mês de luta. E que, diante do que temos visto acontecer com nossas cidades, que seja uma luta para ser lutada por todos. Porque a mobilidade urbana é para todos.
E todos devem estar preparados porque é uma luta grande, lenta e muitas vezes desanimadora. Ainda mais no Brasil, com uma sociedade que segue dependente do automóvel e gestores públicos limitados à atender essa dependência. Não é à toa que estamos no oitavo ano de vigência da Lei da Mobilidade Urbana e no quinto ano da inclusão constitucional do transporte público como direito social e muito pouca coisa mudou. As duas legislações são continuamente ignoradas no País. Como alerta o manifesto do Movimento Nacional pelo Transporte Público de Qualidade (MDT), o transporte público coletivo continua subqualificado, com baixos investimentos em melhorias. As ruas seguem velozes, sem espaço seguro para pedestres e ciclistas. Há avanços, não vamos negar, mais são muito pontuais.
A violência no trânsito continua matando 40 mil pessoas por ano, deixando mais de 500 mil mutilados e gerando custos anuais de R$ 36 bilhões à saúde pública, o equivalente a 12% do PIB brasileiro. Um preço que há décadas pagamos por entregar nossas ruas aos carros, colocando os modais coletivos e ativos em segundo plano. O transporte público segue refém da tarifa paga pelo passageiro, sem um fundo de custeio próprio, alimentado por toda a sociedade, usuária ou não. A bicicleta tem ganhado espaço, mas com muito esforço e pouca efetividade porque é sempre ajustada para não incomodar o automóvel. E a mobilidade a pé ainda luta para ser vista como integrante da cadeia porque a maioria das cidades insiste em não percebê-la.
A pandemia do coronavírus provocou mudanças e alertou sobre os benefícios de vivermos em cidades mais humanas. Tivemos reduções superiores a 50% nos atendimentos de vítimas com traumas nas unidades de saúde de Pernambuco, por exemplo. Foi possível alcançar, mesmo que temporariamente, uma das metas de redução dos índices de emissão de gases de efeito estufa que o Brasil se comprometeu a cumprir no Acordo de Paris/2016, com a diminuição do uso de combustíveis fósseis. A melhoria da qualidade do ar nas grandes cidades pode ser constatada, principalmente nos meses de abril e maio.
O momento, portanto, é ideal para que a sociedade defenda a redução da velocidade das vias urbanas, a implantação de faixas exclusivas para os ônibus, a adequação de infraestruturas para bicicletas e a construção de calçadas acessíveis. E com as eleições municipais, quando novos prefeitos e vereadores serão eleitos, a nova mobilidade urbana ganha ainda mais urgência. Por tudo isso, precisamos exigir ruas mais seguras, mais vivas.
NÚMEROS:
40
mil pessoas morrem por ano no trânsito brasileiro
500
mil pessoas são mutiladas pelo mesmo trânsito violento
36
bilhões de reais é o custo anual dos feridos pelo trânsito para a saúde pública brasileira
50 km/h
é defendido como a velocidade máxima das vias urbanas
Ciclomobilidade
A bicicleta vem ganhando espaço nas cidades. É fato. O processo é lento, ainda enfrenta muitas resistências de gestores e de grande parte da sociedade, principalmente em algumas cidades, mas está acontecendo. A ciclomobilidade não pode mais ser ignorada. Por ninguém. Todos já perceberam isso. Mas ainda devemos muito. A bicicleta segue sendo colocada onde é possível, não onde ela de fato necessita. Há exemplos em todas as cidades do País que têm infraestrutura cicloviária. O Recife é uma delas. A gestão municipal tem avançado na implantação da malha para bicicletas e tem números para mostrar: aumentou em 420% a infraestrutura desde 2013, quando a cidade tinha apenas 24 quilômetros de ciclofaixas, ciclorrotas e ciclovias. Atualmente possui 126 quilômetros.
Mas ainda não teve coragem de enfrentar os grandes corredores viários, de abrir espaço para a ciclomobilidade neles. Mesmo havendo espaço. Segue implantando estruturas em vias de tráfego menor e mais calmo, que de certa forma já representa menos perigo ao ciclista. É claro que ninguém vai reclamar de infraestrutura cicloviária, mas a bicicleta ainda não conseguiu ser enxergada como modal de transporte de fato. Nem mesmo a pandemia do coronavírus foi suficiente para eleger a bicicleta no Brasil. No caso do Recife, um projeto da Ameciclo (Associação Metropolitana de Ciclistas) para que as rotas móveis fossem efetivadas e que outras estruturas ganhassem as ruas não recebeu a menor assistência da prefeitura. Seguimos sem estruturas que conectem as diferentes áreas das cidades, por exemplo.
Mobilidade a pé
Se a bicicleta ainda não é vista como assunto de gente grande na mobilidade urbana, imagine o caminhar. A mobilidade a pé é ainda mais esquecida pela sociedade colonizada pelo automóvel. Precisamos de ruas mais calmas, com controles de velocidade mais eficazes - como a redução da velocidade máxima das vias urbanas para 50 km/h, a adoção de ferramentas de traffic calm com a ampliação das áreas de Zona 30 e o uso do urbanismo tático, barato e que, bem mantido - é claro -, educa, sensibiliza. Precisamos ampliar calçadas e implantar travessias elevadas para mostrar que o pedestre tem sim prioridade.
Recife tem exemplos positivos, como a requalificação da Avenida Conde da Boa Vista, por onde circulam 150 mil pedestres por dia e que ganhou 15 travessias elevadas, além de alargamentos pontuais das calçadas.O uso do urbanismo tático pela CTTU em algumas áreas da cidade e o projeto Calçada Legal de requalificação e implantação das calçadas e passeios públicos que já alcançou 25,4 quilômetros de estrutura desde 2017. Mas o caminhar tem um longo caminho pela frente. As travessias de pedestres, por exemplo, seguem dando mais tempo para o automóvel do que para os pedestres e a ausência de arborização são erros ainda muito comuns.
O Calçada Legal foi lançado em 2017 pela Prefeitura do Recife para beneficiar os principais corredores viários da cidade. Até o fim de 2020, segundo o município, mais 23,2 quilômetros de passeios públicos serão requalificados, totalizando 48,6 km de vias beneficiadas.
Transporte público
O transporte coletivo urbano foi o mais afetado pela pandemia do coronavírus. A perda de demanda mostrou a fragilidade e a injustiça social do modelo financeiro que sustenta o serviço. Ao mesmo tempo, evidenciou o quanto as cidades dependem dele. O quanto as atividades econômicas são beneficiadas por ele. E deu o start para discussões antigas e necessárias como o financiamento público do transporte coletivo brasileiro. Fazer com que todos, usuários ou não, contribuam para melhorar o serviço, já que toda a cidade é beneficiada por ele. Que o automóvel financie um fundo para o transporte público.
Que colabore financeiramente para que as tarifas fiquem mais baratas e a inclusão social seja ampliada, como está propondo a Prefeitura de Porto Alegre em cinco projetos de lei encaminhados há um mês, aproximadamente, para a Câmara Municipal. Que o Brasil crie o Sistema Único de Mobilidade Urbana Sustentável (SUM), uma espécie de SUS da mobilidade urbana, mantido com recursos do uso e exploração do sistema viário e de outros espaços públicos das cidades. Por todas essas necessidades, o mês da mobilidade em 2020 deixa ainda mais evidente a urgência em abrir espaço para os ônibus nas ruas e avenidas e ampliar as redes de metrôs e trens. Pelo bem de todos.
Aplicativos
Os aplicativos de transporte individual remunerado de passageiros, como Uber e 99, já estão incorporados à mobilidade urbana das cidades. E com a regulamentação do serviço pela maioria das cidades onde atuam, aproximaram-se das gestões públicas, criando parcerias com outros tipos de transporte, inclusive o coletivo, como acontece com os sistemas de ônibus, metrô e trens de São Paulo, por exemplo. Os apps começaram a pagar uma taxa pelo uso do sistema viário e são uma das fontes possíveis para o financiamento do fundo de transporte público. Em algumas cidades, como Fortaleza (CE), a arrecadação pelo uso do viário fomenta a política de ciclomobilidade do município. Já Porto Alegre (RS) pretende usá-la para reduzir o valor da tarifa do ônibus. Ao mesmo tempo, os apps assumiram um papel importante de inclusão social na mobilidade urbana. Possibilitaram mais deslocamentos à periferia, onde a oferta de transporte coletivo é menor por estar afastada dos grandes corredores.
Pesquisa da 99 realizada no fim de julho, nas cidades de Manaus, Porto Alegre, Salvador, São Paulo e Rio de Janeiro, apontou que moradores das periferias do Brasil estão utilizando o transporte por aplicativo com maior frequência durante a pandemia. O objetivo, claro, é fugir do transporte coletivo e evitar aglomerações - o que segue sendo frequente nos horários de pico. 54% das pessoas ouvidas na pesquisa “Como as periferias se reconectam com a cidade" afirmaram estar utilizando mais os apps. Por outro lado, entre os meses de fevereiro e agosto, as corridas feitas pela parcela mais rica da 99 caiu, o que pode ser explicado pela possibilidade do home office entre essa população. Belo Horizonte, por exemplo, foi a cidade com maior impacto: a parcela mais pobre da população ampliou em 38% suas viagens por carros de aplicativo enquanto a parcela mais rica apresentou queda de 41%.
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