Chegamos ao sétimo mês de pandemia do coronavírus e, ao fazer uma leitura real e crítica da situação, é evidente que ainda não tiramos nenhuma lição da crise sanitária para a mobilidade urbana. Pelo menos não na prática. É o caso do Recife, da Região Metropolitana e também do Brasil. Nossas ruas e avenidas continuam sendo espaços prioritários para o automóvel, com os modais ativos e o transporte público ainda em segundo plano. Temos ensaiado mudanças, estudado possibilidades, mas na prática, pouco, muito pouco foi feito. No máximo, aproveitamos o isolamento social e o consequente esvaziamento das vias para antecipar a entrega de projetos prometidos há tempos - dois, três, cinco anos.
É o caso da requalificação da Avenida Conde da Boa Vista, corredor-símbolo da cidade e do transporte público, entregue pela Prefeitura do Recife com quatro meses de antecedência. Assim como a implantação - depois de uma espera superior a dois anos - da prometida Faixa Azul para ônibus na Avenida Agamenon Magalhães, via que representa o pulmão viário da capital e que destinava suas 12 faixas de rolamento à supremacia do carro. E os 11 km de malha cicloviária que o município entregou do início da pandemia até agora.
Não estamos desmerecendo os projetos - importantes para a cidade e para a valorização da mobilidade urbana sustentável, menos focado no transporte individual. Mas se esperava mais. Pelo mundo, muitas gestões - bem mais ricas do que as nossas, é preciso destacar - entenderam que a pandemia do coronavírus é o momento ideal para rever conceitos de mobilidade, abrindo espaços para a mobilidade ativa e até mesmo para o transporte público - que embora tenha sido atropelado pelo vírus, vai sobreviver de qualquer forma. Essas gestões criaram rotas alternativas de deslocamento por bicicletas, por exemplo, tirando o espaço do carro para dar a quem quer pedalar. Também têm ampliado calçadas e transformado ruas e vagas de estacionamento em espaços para os pedestres. Enquanto isso, nós ainda estamos na fase de executar projetos que seriam implantados mesmo sem a pandemia.
E seguimos fechados ao novo. Pelo menos publicamente e por enquanto. Talvez as prefeituras estejam elaborando projetos e desenvolvendo ideias que vão nos surpreender em breve. Mas nada foi divulgado até agora. Nem mesmo o apelo da Associação Metropolitana de Ciclistas do Recife (Ameciclo) para criar rotas cicloviárias nos principais e mais violentos corredores viários, além de tornar permanente as ciclofaixas móveis de turismo e lazer, teve um retorno efetivo. Os ciclistas propuseram a implantação de 90 quilômetros de ciclofaixas não só em vias calmas, mas nas grandes avenidas do Recife, por um custo máximo de R$ 4 milhões. Ou seja, pelo ritmo atual, vamos tirar poucas lições da pandemia para a mobilidade urbana das nossas cidades.
TRANSPORTE PÚBLICO, ACREDITE, É O SETOR QUE MAIS PREVÊ MUDANÇAS
O transporte público, apesar de duramente criticado e sofrer com as aglomerações nos horários de pico da manhã e da noite, é o que - por incrível que pareça - mais tem passado por mudanças. Pelo menos no que diz respeito às regras operacionais. A diretoria de Planejamento do Grande Recife Consórcio de Transporte Metropolitano (CTM) está refazendo o regulamento operacional do sistema e incluindo novos critérios e índices de desempenho relacionados à higienização e distanciamento para serem cumpridos pelo setor. E todos passíveis de punição - pelo menos na teoria. Entre eles, por exemplo, a determinação para que os coletivos transportem apenas dois passageiros por metro quadrado e 10% de sua capacidade total em pé nas viagens. São determinações ousadas, ainda não aprovadas e de difícil fiscalização e execução. Isso porque, só para se ter ideia, antes da pandemia a regra para transporte de passageiros eram seis pessoas por metro quadrado. E, quase sempre, não era cumprido.
“Temos trabalhado muito nessas regras. Já são 67 recomendações para serem adotadas. Muitas delas já estão em prática. São 23 medidas de prevenção à propagação do coronavírus, 19 relacionadas ao equilíbrio econômico-financeiro do setor e dez para a manutenção do serviço. São muitas mudanças. Seja para agora, durante a pandemia, mas também para o pós, porque sabemos que o impacto no transporte público se prolongará por algum tempo mesmo depois do fim do isolamento. Muita coisa mudou, as pessoas, os trabalhos, a economia. E tudo isso tem efeito direto no transporte urbano”, argumenta Maurício Pina, diretor de Planejamento do CTM.
O equilíbrio econômico-financeiro do setor de transporte a que se refere Pina é, inclusive, a grande questão. Por necessidade, a pandemia tem provocado uma ampla discussão nacionalmente sobre a urgência de se rever as formas de financiamento do setor, que no Brasil é totalmente dependente da tarifa paga pelo passageiros, com pouquíssimas exceções de subsídio público. O coronavírus acendeu o alerta em muitas gestões de que é preciso encontrar fontes extra tarifárias para o setor e que elas devem ser cobradas daqueles que utilizam o automóvel.
Em Porto Alegre, por exemplo, a proposta de pedágio para carros no Centro da capital gaúcha foi retomada. Pela segunda vez, agora com mudanças, a prefeitura tenta aprovar na Câmara Municipal seu pacote de medidas para custear o transporte público. Além do pedágio, é proposto:
* Fim da taxa de gestão da Câmara de Compensação Tarifária (CCT): Extingue os 3% da Câmara de Compensação Tarifária destinados à EPTC (gestor do sistema).
* Tarifa de uso do sistema viário para os aplicativos (TUSV): Cobrança de R$ 0,28 por quilômetro rodado das empresas de aplicativo, cujos recursos serão destinados totalmente para subsidiar a tarifa de ônibus.
* Tarifa de congestionamento urbano: Denominação para o pedágio, que inicialmente seria uma taxa de R$ 4,70 a ser cobrada dos veículos emplacados fora de Porto Alegre para entrar na cidade em dias úteis. Mas devido à reação dos vereadores, foi alterada para o acesso ao Centro da cidade.
* Redução gradual de cobradores: Desobrigaria a presença da função das 22h às 4h; em dias de passe livre, domingos e feriados; em linhas com número reduzido de passageiros; e em linhas alimentadoras.
Taxa de Mobilidade Urbana (TMU): empresas não comprariam vale transporte. Pagariam uma taxa por cada empregado.
Nacionalmente, o transporte público está no aguardo da aprovação pelo Congresso Nacional do Projeto de Lei 3.664/2020, que prevê R$ 4 bilhões de auxílio financeiro ao setor de transporte coletivo durante a pandemia, ajudando Estados e municípios a cobrir um rombo que, segundo os operadores de transporte por ônibus e sobre trilhos, já ultrapassa os R$ 5 bilhões. Pernambuco também está no aguardo. Espera receber, em média, R$ 120 milhões. Mas é um recurso para reequilibrar a perda de receita do STPP, que está 50% aproximadamente. A discussão sobre outras fontes de renda para o setor além da tarifa do passageiro ainda está bem embrionária. Mas a pandemia tem forçado o poder público a pensar nela.
ESCALONAMENTO DE HORÁRIOS VOLTA À DISCUSSÃO
O escalonamento de horários para atividades econômicas e educacionais - algo que se fala há pelo menos 40 anos - também voltou a permear o debate para ajudar o transporte público e propostas começaram a ser feitas, como é o caso da iniciativa do Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros de Pernambuco (Urbana-PE) propondo a alteração dos horários de entrada e saída de alguns setores econômicos para achatar a concentração de passageiros nos picos da manhã e da noite. E, assim, diminuir as aglomerações. É mais uma tentativa de melhorar a operação e a imagem do sistema.
Conheça a PROPOSTA da URBANA-PE
PESQUISA APONTA MEDO DO TRANSPORTE PÚBLICO
As reações para socorrer o setor e evitar a suspensão e a precarização dos sistemas é justificada porque a expectativa é de que o transporte público sentirá, assim como alguns serviços e áreas, o impacto da pandemia por algum tempo durante o chamado novo normal. As pessoas estão com medo de usar ônibus e metrô e não confiam na higienização promovida pelos operadores. Além disso, com a perda de receita, muitas frotas não retornaram 100% - como é o caso da RMR, que há dois meses opera com 70% dos veículos - e nos picos é comum se ver um total desrespeito às regras de combate ao vírus.
Pesquisa realizada pela Rede Nossa São Paulo em parceria com o IBOPE Inteligência apontou que grande parte dos usuários habituais do transporte público vai evitá-lo o máximo que puder. O levantamento foi feito apenas com paulistanos, mas reflete o sentimento nacional. Pode ter certeza. A pesquisa foi realizada entre os dias 18 e 28 de julho, de forma virtual entre internautas das classes A, B e C da cidade de São Paulo. Trouxe a percepção dos moradores da capital paulista sobre as ações do poder público relacionadas à pandemia e o que os cidadãos pretendem fazer após o fim do isolamento.
Os resultados mostram o tamanho do desafio do setor para convencer a sociedade de que são confiáveis. Os aplicativos de transporte individual e os táxis também terão desafios. 30% dos entrevistados pretendem usar menos o ônibus, 27% querem diminuir o uso de trem/ metrô e 19% têm intenção de usar menos táxi/carros de aplicativo nos deslocamentos cotidianos. Considerando apenas aqueles que já usavam o transporte coletivo diariamente, a prioridade em usar o carro em seus deslocamentos diários após a pandemia cresceu 5%. Entre os moradores do Centro de São Paulo, 52% querem andar mais a pé e 30% pretendem usar mais a bicicleta para se deslocar depois que a pandemia passar.
AÇÕES NO RECIFE
Provocada pela reportagem sobre quais os planos para a mobilidade durante e após a pandemia, a Prefeitura do Recife citou quatro projetos que foram executados durante o isolamento. Todos, entretanto, intervenções que já estavam em execução e foram antecipadas. Mas na visão da gestão municipal, a preocupação com a mobilidade das pessoas fez com que essas obras não fossem interrompidas e as entregas até antecipadas. É o caso da Faixa Azul da Avenida Agamenon Magalhães (que beneficia 250 mil passageiros por dia), mais 11 quilômetros de malha cicloviária implantada no Centro, a Nova Conde da Boa Vista e a criação da área de trânsito calmo no entorno da Feira Nova de Água Fria, na Zona Norte de Recife, que concentra grande número de pedestres.
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