POR UM NOVO TRANSITAR

A indústria é da infração, não das multas de trânsito

No segundo dia da série Por um novo transitar, o tema é o discurso fácil da indústria de multas e a importância de o motorista brasileiro adotar o comportamento de risco ao volante

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Roberta Soares

Publicado em 25/01/2021 às 8:00 | Atualizado em 15/02/2023 às 10:41
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Só não percebe quem não quer. Os danos que o trânsito brasileiro provoca para a sociedade não deixam dúvidas: não existe uma indústria de multas no País. Existe uma indústria da infração. E das mais perigosas, tendo o excesso de velocidade e o uso incontrolável dos smartphones ao volante na liderança. Uma minoria dos motoristas brasileiros é muito mal educada, imprudente e extremamente individualista ao volante. E por causa deles, todos pagam, o número de mortos segue alto, o de mutilados impressiona e o custo de tudo isso para a saúde pública assusta. E indigna. E dá força ao discurso fácil da indústria da multa. Que ganhou roupagem oficial do próprio presidente da República, Jair Bolsonaro. Mostrar que a indústria que existe é a da infração e que o motorista brasilerio precisa incorporar o comportamento de risco ao volante são os temas da segunda reportagem da série Por um novo transitar, publicada pela Coluna Mobilidade.

CONFIRA A SÉRIE POR UM NOVO TRANSITAR

* Trânsito brasileiro mata mais do que as armas de fogo

* Motos seguem sendo as vilãs do trânsito

* Histórias de dor e impunidade - As vítimas do trânsito brasileiro


INFRAÇÕES, INFRAÇÕES E MAIS INFRAÇÕES

Quem estuda, operacionaliza e vivencia a segurança viária no Brasil é unânime em afirmar que, juntos, todos os órgãos, agentes de trânsito e equipamentos de fiscalização eletrônica do País, conseguem notificar menos de um terço das infrações cometidas pelos motoristas. Além das capitais, poucas cidades conseguem recursos para investir em tecnologia de trânsito, que custa caro e está sempre em atualização. Em 95% das estradas federais, onde a gravidade das colisões costuma ser maior devido à velocidade de tráfego, não há qualquer controle, por exemplo. A Associação Brasileira das Empresas de Engenharia de Trânsito (Abeetrans) aponta a existência de 30 a 40 mil equipamentos de fiscalização eletrônica no País, enquanto somente de rodovias federais são 1,5 milhão de quilômetros.

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SÉRIE TRANSITO - PARTE 1 - ARTES JC

“O Brasil sempre na contramão. No lugar de ampliar a segurança, paga a conta depois. Estudo do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) levantou um custo anual de quase R$ 150 bilhões ao ano com vítimas do trânsito. São 40 mil mortos anualmente e milhares de mutilados. E as pessoas ainda alimentam o discurso da indústria da multa. É absurdo”, critica Silvio Médici, presidente executivo da Abeetrans. Números do DataSus fechados no fim de 2020 mostram que 32 mil pessoas morreram no trânsito brasileiro em 2019, mas estima-se uma subnotificação das mortes de até 30%. O fardo que virou o trânsito brasileiro também foi evidenciado pelo estudo Impactos Socioeconômicos dos Acidentes de Transporte no Brasil, do Ipea, numa parceria com a Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal) da ONU.

O estudo mostrou que o Brasil perdeu quase 500 mil vidas em onze anos - de 2007 a 2011. o que representa, em média, 45 mil mortes anuais. E, como se não bastasse, ainda gastou, no mesmo período, R$ 1,5 trilhão com essas colisões e atropelamentos. Um trânsito que mata muito, mutila demais e ainda custa R$ 132 bilhões por ano. Por sorte, a grande maioria dos motoristas brasileiros não é infratora. Entre 15% e 18% dos habilitados – aproximadamente 80 milhões atualmente – são considerados infratores contumazes, ou seja, que foram autuados pelo menos duas vezes no ano. Caso contrário, o discurso da indústria da multa seria ainda maior.

Questionamentos sobre os valores de arrecadação com multas também são comuns, especialmente em períodos que antecedem eleições. E, geralmente são desconstruídos com os números da eficiência da fiscalização para a segurança viária. No País, as estatísticas técnicas já comprovaram que onde há radares para controle de velocidade a redução das colisões chega a 83%. Ou seja, a grande questão é: devemos deixar de ampliar a fiscalização para salvar vidas porque ela vai significar uma arrecadação com multas maior devido à imprudência de motoristas?

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SERIE TRÂNSITO - PARTE 2 - ARTES JC

“O discurso da indústria da multa é alimentado pela falta de educação sobre o trânsito. Pelo desconhecimento dos critérios para realização da fiscalização e da importância que ela tem para evitar eventos e mortes. Podem haver problemas pontuais e eles precisam ser corrigidos, sem dúvida, mas não há armadilhas como algumas pessoas defendem. Principalmente com a fiscalização eletrônica. Ela não faz juízo de valor. O motorista é pego por ela porque, de fato, errou. Seja por imprudência ou por desatenção. Por isso é tão importante o comportamento de risco. Perceber que o perigo não é a multa em si, mas a vida”, ensina o especialista em trânsito e observador certificado do Observatório Nacional de Segurança Viária (ONSV), Emanoel Plácido.

No Recife, por exemplo, a arrecadação com multas pulou de R$ 36 mil em 2017 para R$ 69 mil em 2018 e, depois, para R$ 98 mil em 2019. E isso aconteceu porque houve a ampliação da fiscalização eletrônica para, como afirmou a própria Autarquia de Trânsito e Transporte Urbano do Recife (CTTU), preservar vidas. Os equipamentos eletrônicos, inclusive, respondem por quase 40% das notificações. Em 2019 foram 79.760 multas, sendo 38% por fiscalização eletrônica. No ano de 2020 foram emitidas 713.221 e 35% delas foram pelos radares e câmeras de videomonitoramento. Atualmente, a capital pernambucana tem 28 câmeras de videomonitoramento (que autuam os motoristas pela Central de Operação de Trânsito - COT) e 170 equipamentos de fiscalização eletrônica, o que permitiu uma redução de 53,5% dos acidentes com mortes e de 17% com feridos entre 2012 e 2019.

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Uma minoria dos motoristas brasileiros é muito mal educada, imprudente e extremamente individualista ao volante. E por causa deles, todos pagam, o número de mortos segue alto, o de mutilados impression e o custo de tudo isso para a saúde pública assusta - ARTES JC

MAUS HÁBITOS TAMBÉM NA PANDEMIA
Nem mesmo a pandemia conseguiu mudar a irresponsabilidade de alguns condutores. Em Pernambuco, pelo menos. O desrespeito aos limites de velocidade, por exemplo, ocuparam a primeira e a segunda colocação entre as infrações mais cometidas em 2020. Algo que não era verificado pelo menos nos últimos três anos. Foram quase 650 mil multas por excesso de velocidade. A explosão das infrações por uso de celulares ao volante também tem acontecido em todo o País, puxando o número de multas para cima. Principalmente desde 2016, quando o manuseio (e não apenas o uso) dos aparelhos foi incluído no Código de Trânsito Brasileiro (CTB).

MENOS FISCALIZAÇÃO, MAIS MORTES E FERIMENTOS
Levantamento do SOS Estradas, programa criado pela sociedade civil para reduzir os acidentes e aumentar a segurança nas rodovias, identificou uma relação direta entre a redução da fiscalização e o crescimento da violência no trânsito. Numa comparação entre os trimestres de 2018 e 2019 - ano em que o governo federal começou a reduzir o funcionamento e a instalação de radares de velocidade nas rodovias federais -, houve um aumento da média mensal de mortos e feridos. 

“A curva mudou, ou seja, aumentaram os mortos e feridos após a política do governo de desligamento de radares e lombadas eletrônicas em abril de 2019 e a retirada dos radares portáteis da Polícia Rodoviária Federal entre agosto e dezembro do mesmo ano. A situação foi tão absurda que nenhum veículo foi multado por excesso de velocidade nas rodovias federais entre agosto e dezembro de 2019. Situação extremamente perigosa quando lembramos que 95% da malha rodoviária federal não têm fiscalização eletrônica. E é nelas onde a gravidade e a fatalidade do trânsito são maiores”, alerta o coordenador do SOS Estradas e fundador do Trânsito Amigo, Rodrigo Rizzotto.

HÁ 15 ANOS O RECIFE DESLIGA A FISCALIZAÇÃO À NOITE
Apesar dos esforços técnicos da CTTU, conseguindo reduções de eventos e vítimas no trânsito, o Recife é um péssimo exemplo sob a ótica da segurança viária. E não é de hoje. Faz 15 anos. Desde 2006, quando, por força de decisão judicial, a cidade passou a desligar todo e qualquer equipamento de fiscalização eletrônica de trânsito, sejam os que controlam a velocidade, como os de avanço de semáforo. Não se tem notícia de outra cidade brasileira que faça o mesmo.

Na época, o juiz José Marcelon Luiz e Silva, então na 1ª Vara da Fazenda Pública da Capital, determinou o desligamento dos equipamentos das 22h às 5h (em 2006 eram apenas os bandeirões, chamados de lombadas). O magistrado foi favorável a uma ação civil pública do Ministério Público de Pernambuco (MPPE), que teve como autora a promotora Andréa Nunes. O Recife tinha apenas três equipamentos (Na Cabanga, na Avenida Alfredo Lisboa e na Avenida Abdias de Carvalho) e o argumento do MPPE era de que havia um aumento no número de assaltos nessas áreas. Embora os registros não fossem, comprovadamente, nos pontos onde havia fiscalização eletrônica. A CTTU recorreu até onde foi possível, mas em 2012 a apelação foi julgada pela 2ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE), que confirmou a sentença de 1º grau. E, em 2013, a decisão transitou em julgado, ou seja, não cabia mais recursos para modificação da sentença.

O mais grave é que os números da própria gestão municipal mostram o estrago que esse desligamento promove não só moralmente - porque estimula o desrespeito aos limites por condutores infratores -, mas também na prática. O horário das 22h às 5h respondia por até 40% de todas as mortes provocadas por colisões e atropelamentos na cidade entre 2014 e 2016. Para alarmar ainda mais, é importante lembrar que os registros foram feitos quando a frota circulante de veículos sofre uma redução de 60%. Os dados comprovam o que estudiosos da segurança viária alardeiam há anos no País: que a fiscalização eletrônica de velocidade e de avanço de semáforos é ainda mais importante à noite porque é nesse turno quando o condutor mais acelera e ainda arrisca misturar bebida e direção.

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Relação entre eventos de trânsito e o desligamento da fiscalização eletrônica - ARTES JC

OUTRAS SITUAÇÕES
O Recife não parou por aí. Em 2018, o prefeito Geraldo Julio (PSB) por pouco não cedeu a um pedido do então vereador Marco Aurélio (PRTB) para desligar por 30 dias e nos horários de pico da manhã e noite os equipamentos de fiscalização eletrônica de velocidade na cidade. Houve uma grita de importantes atores da sociedade civil organizada, como professores de engenharia e transportes da UFPE e da Associação Metropolitana de Ciclistas (Ameciclo), que chegou a acionar a Justiça. O prefeito desistiu. Mas em 2019, o Executivo municipal sancionou a Lei 18.643 que ampliou em 1h a não autuação dos avanços de semáforos à noite no Recife. Quem assinou a sanção foi o então vice-prefeito Luciano Siqueira (PC do B).

VOCÊ SABE O QUE É COMPORTAMENTO DE RISCO?
São atitudes, gestos e posturas que o motorista, o pedestre, o ciclista e o passageiro - todos que compõem o trânsito - podem e devem adotar, independentemente de haver ou não uma fiscalização - humana ou eletrônica. É como respeitar a velocidade limite das vias mesmo sem radares, reduzir nas travessias e ao ver ciclistas ou pedestres, ou ainda não beber quando vai dirigir, mesmo que não tenha blitz da Lei Seca no percurso, por exemplo.

O discurso da indústria da multa é alimentado pela falta de educação sobre o trânsito. Pelo desconhecimento dos critérios para realização da fiscalização e da importância que ela tem para evitar eventos e mortes. Podem haver problemas pontuais e eles precisam ser corrigidos, sem dúvida, mas não há armadilhas como algumas pessoas defendem. Principalmente com a fiscalização eletrônica. Ela não faz juízo de valor. O motorista é pego por ela porque, de fato, errou. Seja por imprudência ou por desatenção. Por isso é tão importante o comportamento de risco. Perceber que o perigo não é a multa em si, mas a vida”,
Emanoel Plácido, do ONSV

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Emanoel Plácido, especialista em trânsito - ACERVO PESSOAL

Alguns dos fatores de risco em segurança viária

Beber e Dirigir
A Organização Mundial de Saúde (OMS) considera o comportamento de beber e dirigir um dos principais fatores que mais causam colisões, mortes e ferimentos no trânsito. O condutor que bebe um copo de cerveja, por exemplo, tem três vezes mais chance de morrer em uma colisão do que um condutor sóbrio. Estudo da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet) mostra que o álcool, além de comprometer as capacidades cognitivas, também reduz as chances de sobrevivência. Quanto mais a pessoa tiver bebido, maior a chance de morrer. Um mesmo impacto causa mais ferimentos numa pessoa que
ingeriu álcool.

Pelo CTB, a tolerância de álcool é ZERO. Conduzir veículo automotor sob influência de álcool é uma infração de natureza gravíssima X 10, multa no valor de R$ 2.934,70, recolhimento e suspensão da habilitação por 12 meses e retenção do veículo até apresentação de outro condutor habilitado apto a conduzir o veículo. Se a concentração for igual ou superior a 0,30 miligrama de álcool por litro de ar alveolar ou o motorista tenha sinais que indiquem alteração de capacidade psicomotora, o mesmo ainda poderá ser preso. A pena varia de seis meses a três anos.

Velocidade
Também segundo a OMS, a velocidade excessiva é responsável por uma em cada três mortes por eventos de trânsito em todo o mundo. A velocidade elevada provoca um efeito de afunilamento no campo visual - ou visão periférica - do condutor, o que prejudica a percepção de pedestres e outros obstáculos nas ruas. No caso de um atropelamento a 80 km/h, os danos causados ao corpo humano seriam equivalentes a despencar do 9° andar de um prédio, praticamente anulando as chances de a vítima escapar com vida. Já se o veículo estiver a 50km/h, as chances de sobrevivência seriam maiores, similares a uma queda do 4° andar.

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Impactos do uso do celular ao volante - ARTES JC


Uso do capacete por motociclistas
A OMS diz que, com o uso do capacete devidamente preso à cabeça, a probabilidade de morte diminui em 40% e de lesão grave em 70%, ou seja, a cada 100 motociclistas que morrem e não estavam utilizando capacete, 40 teriam sobrevivido se estivessem utilizando. E a cada 100 motociclistas que tiveram lesão grave na cabeça, 70 teriam evitado essa lesão.

Cinto de Segurança e assento Infantil
A OMS afirma que usar o cinto de segurança pode reduzir as mortes entre os passageiros da frente em até 50% e entre os passageiros nos bancos traseiros de um carro em até 75%. Já com relação aos assentos infantis, as cadeirinhas e assentos elevatórios, o uso correto diminui o risco de morte em um acidente em cerca de 70% para bebês e até 80% para crianças pequenas.

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O discurso da indústria da multa é alimentado pela falta de educação sobre o trânsito. Pelo desconhecimento dos critérios para realização da fiscalização e da importância que ela

Emanoel Plácido, do ONSV

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