Histórias de dor e impunidade - As vítimas do trânsito brasileiro
As vítimas do trânsito, com suas histórias de dor e revolta, são o tema da quarta e última reportagem da série Por um novo transitar
Elas são a razão de tanta luta pela segurança viária no Brasil. São, inclusive, a razão principal da série Por um novo transitar, que chega à quarta e última reportagem falando delas - as vítimas do trânsito brasileiro. Vítimas, aliás, de muito, muito descaso. De muita, muita imprudência. Todas as histórias mostradas aqui têm esse traço: irresponsabilidade e desprezo pela vida humana. São pedestres, ciclistas, passageiros e motoristas mortos pelo excesso de velocidade ao volante, pelo descaso diante da legislação e pela mistura álcool e direção.
CONFIRA A SÉRIE POR UM NOVO TRANSITAR
* Trânsito brasileiro mata mais do que as armas de fogo
* A indústria é da infração, não das multas de trânsito
* Motos seguem sendo as vilãs do trânsito
Há responsáveis que, com certeza, arrependeram-se dos atos, mas como sempre é quase impossível conversar com eles, ficamos com a tragédia das histórias de suas vítimas. Que essas histórias nos ensinem a ver o trânsito - feito por todos e, não apenas, por veículos motorizados - de outra forma. A perceber a matança silenciosa que vem sendo promovida no País e entender que ela pode e deve ser evitada. No trânsito, quase nunca é acidente - algo evitável. Ao contrário. São motoristas imprudentes, infraestrutura precária e que muitas vezes induz ao erro, circulando pelas ruas, avenidas e rodovias do País.
A série Por um novo transitar também chega ao fim com uma boa nova. Uma mudança que pode parecer pouco efetiva diante da tragédia que o trânsito brasileiro segue sendo - 32 mil mortos em 2019 (dados mais recentes do DataSus), 300 mil mutilados e um custo de R$ 132 bilhões por ano -, mas que tem poder simbólico. Tem o poder de marcar o início de um novo olhar sobre todo esse fenômeno ainda "aceito" por boa parte da sociedade.
A Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) alterou a terminologia acidente de trânsito para sinistro de trânsito. Assim, o Brasil se moderniza e se adequa às tendências mundiais da Visão Zero (de nenhuma morte no trânsito), adotadas com redução de mortes em países como Espanha, Suécia e Estados Unidos. E mais: manda o recado para toda a sociedade de que, no trânsito, #nãoéacidente.
UM CRIME SEM CULPADOS
Quem vê as imagens do atropelamento do engenheiro eletricista Hélio Almeida Araújo, 64 anos, ciclista por opção e devoção, ainda se impressiona com a estupidez e violência do ato em Santo Amaro, área central do Recife. A impressão é de que o motorista do veículo Fiesta prata, não se sabe por qual razão, sequer percebeu a bicicleta à sua frente. Passa por cima do engenheiro, sumindo em seguida. E o caso permanece sem identificação até hoje. De tão forte, a pancada que surpreende Hélio Almeida e o derruba da bicicleta com facilidade também provoca o deslocamento do cérebro do engenheiro, decretando sua morte horas depois. Era o ano de 2017. E o crime já caiu no esquecimento do Estado. O culpado (ou seria culpada?) segue sem identificação. Impune e livre.
REVOLTA NACIONAL
O atropelamento da socióloga Marina Kohler Harkot, de 28 anos, pesquisadora e cicloativista atuante, na madrugada do domingo (8/11/2020), enquanto pedalava em Pinheiros, Zona Oeste de São Paulo, gerou uma revolta nacional. Marina foi pega por trás por um condutor que sequer parou para socorrê-la. Querida e respeitada no mundo da ciclomobilidade e da mobilidade sustentável como um todo, colocou mais uma vez em evidência a lógica injusta do planejamento das cidades - na qual o automóvel é prioridade em tudo e sobre todos. O empresário José Maria da Costa Júnior, de 33 anos, identificado como o suspeito do crime, se apresentou à polícia paulistana dois dias após o atropelamento, mas não foi preso por estar na semana eleitoral, quando apenas as prisões em flagrante podem ser efetuadas. Marina Harkot lutava pela ampliação da ciclomobilidade em São Paulo e no Brasil e pelo direito das mulheres pedalarem com segurança.
Em dezembro, o Ministério Público de São Paulo (MPSP) denunciou o empresário por atropelar e matar a cicloativista. A promotoria entendeu que houve um homicídio qualificado (com dolo eventual), agravado pelo fato de o condutor ter fugido do local sem prestar socorro e estar sob efeito de álcool.
ESMAGADOS SOBRE A CALÇADA
Outro caso de morte no trânsito que coleciona episódios de impunidade é o atropelamento do casal de amigos Isabela Cristina de Lima, 26 anos, e Adriano Francisco dos Santos, 19, esmagados quando estavam na porta de casa, numa comunidade às margens da Avenida Desembargador José Neves (Canal do Jordão), em Boa Viagem, Zona Sul do Recife, pelo empresário Pedro Henrique Machado Villacorta, 28 anos, que estava alcoolizado no dia do atropelamento e tinha um histórico de fazer vergonha como condutor: acumulava em 2016, época da colisão, 116 pontos na CNH resultantes de 27 multas registradas entre 2012 e 2016. O empresário foi retirado do local pela PM e levado, mesmo sem ferimentos, para atendimento na UPA da Imbiribeira, no lugar de ser encaminhado à delegacia de polícia. Está livre até hoje. Villacorta, inclusive, por pouco não escapa do julgamento por homicídio doloso. O juiz do caso desclassificou o crime para culposo, mesmo o MPPE tendo denunciado por dolo eventual. Mas, em 2017, o TJPE manteve a denúncia dos promotores.
VELOCIDADE EXTREMA E MUITO ÁLCOOL
Um dos casos mais violentos do trânsito registrados no Recife é a tragédia da Tamarineira, como ficou conhecida a colisão ocorrida em novembro de 2017, na Zona Norte do Recife e que destruiu a família do advogado Miguel Arruda da Motta Silveira Filho, 46, que perdeu a esposa Maria Emília Guimarães, 39, o filho mais novo Miguel Arruda da Motta Silveira Neto, 3, e a babá Roseane Maria de Brito, 23, grávida de quatro meses. O advogado e a filha mais velha, Marcela Guimarães, 5, sobreviveram, mas a garota ficou com sequelas. O veículo da família foi destruído pelo condutor João Victor Ribeiro de Oliveira Leal, 25, que bebeu o dia inteiro e avançou o semáforo a 108 km/h, 22 segundos depois de o equipamento ter ficado vermelho. A violenta colisão também ficou conhecida por ser uma das poucas exceções da não impunidade no trânsito. João Victor foi preso em flagrante, indiciado e denunciado por triplo homicídio doloso (dolo eventual) e dupla lesão corporal grave. Segue preso e já teve diversos pedidos de habeas corpus negados. Ainda não há data certa, mas o julgamento no Tribunal do Júri é certo.
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ATROPELADO NA FAIXA DE PEDESTRES
Sebastião Tenório, 53 anos, bicicleteiro desses que resolvem tudo de bike, foi morto no dia 11 de março de 2017, em Casa Caiada, Olinda, na Região Metropolitana do Recife. Atravessava a faixa de pedestres quando foi pego por um carro. Desmontou da bicicleta e a empurrava ao lado do corpo, como devem fazer os ciclistas – pelo menos segundo o Código de Trânsito Brasileiro (CTB). Tanto cuidado de nada adiantou. Já estava no meio da travessia, segundo uma testemunha, quando a morte o arrastou. Morreu na hora. A bicicleta voou para um lado, ele poucos metros à frente. Antes, uma freada brusca, como um prenúncio da violência seguinte, comum nas mortes no trânsito. O condutor do veículo Gol que atropelou Sebastião abandonou o automóvel e fugiu. Retornou depois de algum tempo. Afirmou à polícia que saiu por temer ser agredido diante da cena do homem estirado ao chão, sobre uma faixa de pedestres. As versões sobre o evento mudam de acordo com quem as conta. A família de Sebastião diz, com base no depoimento de testemunhas, que o motorista forçou a ultrapassagem no amarelo do primeiro semáforo do cruzamento. Conseguiu passar pela primeira faixa de pedestres, mas não pela segunda, onde Sebastião iniciava a travessia.
ARRASTADO POR 50 METROS
No início de 2019, o ciclista e auxiliar de cozinha César Filipe Gomes da Silva, 30 anos, foi atropelado, arrastado por 50 metros e morto enquanto pedalava na Ponte João Paulo II, que compõe o chamado Viaduto Joana Bezerra, na Ilha do Leite, área central do Recife. O réu confesso é o empresário do ramo de eventos Hélio Mendonça, 33, que dirigia uma caminhonete e sequer parou para prestar socorro aos ciclistas – César Filipe pedalava com outros dois amigos e um deles ficou ferido. O empresário só se apresentou à polícia porque foi identificado, trafegando aparentemente em alta velocidade, pelas câmeras da CTTU. Prestou depoimento, garantiu que não tinha bebido – embora integre uma banda musical e tenha passado a noite numa festa open bar – e que não tinha visto o trio pedalando no viaduto. Foi indiciado por homicídio culposo porque a Polícia Civil não conseguiu comprovar a alta velocidade evidenciada nas imagens nem um possível consumo de álcool. Enquanto isso, parentes do auxiliar de cozinha choram a segunda morte por atropelamento na família.
IMPUNIDADE HISTÓRICA
A morte da auxiliar de enfermagem Aurinete Gomes de Lima, 33 anos, em 2008, um dos casos de maior repercussão no Recife, é a confirmação de que a punição para os crimes no trânsito são mais comuns quando as vítimas têm recursos financeiros. Aurinete morreu na hora, o marido Wellington Lopes e a filha, que na época tinha seis anos, ficaram gravemente feridos quando o carro em que estavam foi praticamente destruído pela caminhonete dirigida pelo empresário Alisson Jerrar Zacarias dos Santos, após avançar um semáforo da Avenida Domingos Ferreira, em Boa Viagem, Zona Sul da capital pernambucana. O condutor estava a mais de 100 km/h e alcoolizado. Tinha virado a madrugada numa boate. Onze anos depois do crime e tendo passado todo o tempo livre, Jerrar foi condenado a oito anos de prisão, mas em regime semiaberto. Até hoje não passou uma única noite na prisão e segue levando uma vida normal. A família de Aurinete também segue a vida, mas ruminando, por todos esses anos, a angústia provocada pela impunidade. Também aprendeu a conviver com a saudade.
Veja o que diz a ABNT NBR 10697, de 2020
A terminologia “sinistro de trânsito” é aplicada e definida, de forma geral, como “todo evento que resulte em dano ao veículo ou à sua carga e/ou lesões a pessoas e/ou animais, e que possa trazer dano material ou prejuízos ao trânsito, à via ou ao meio ambiente, em que pelo menos uma das partes está em movimento nas vias terrestres ou em áreas abertas ao público”. A mudança acontece para deixar claro que o termo “acidente” pode ser usado em diferentes casos, como por exemplo, a queda de um copo d’água. Por isso, no trânsito, agora é sinistro de trânsito.