A morte do BRT: financiamento do transporte público é responsabilidade de todos
A urgência de criar novas fontes extra tarifárias, e até um marco regulatório para o transporte público, é o tema da terceira e última reportagem da série A morte do BRT
Não tem almoço de graça e alguém sempre paga a conta. Essas duas frases são frequentemente verbalizadas no transporte público coletivo. Quem vive no setor sabe disso. No mundo, ainda mais no Brasil. Com a diferença que, em muitos países, essa conta é paga por todos, pela sociedade em geral, usuária ou não dos ônibus e metrôs que circulam nas cidades. O entendimento - forçado pela visão da gestão pública, é importante destacar esse papel - é de que o transporte coletivo beneficia a todos: comércio, serviços em geral, indústria imobiliária, construção civil, escolas e universidades, para citar alguns setores. Por isso, a contribuição deve ser feita por todos. No Brasil, é diferente. Bem diferente. Seguimos colocando o ônus dessa conta quase que exclusivamente no bolso do passageiro - especialmente daquele mais pobre, que tem menos renda. A discussão de criar novas fontes extra tarifárias, e até um marco regulatório para o transporte público, tem avançado no País, principalmente com a crise da pandemia de covid-19 que afastou a demanda. Mas nada aconteceu na prática ainda. E é exatamente sobre a urgência de essas fontes serem definidas - para o bem do transporte público em geral, ainda mais para os sistemas BRTs - que trata a terceira e última reportagem da série A morte do BRT.
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Financiamento público precisa ser enfrentado
Não dá mais para adiar a inversão da lógica de que o transporte público coletivo é problema apenas de quem o utiliza. Não é justo. A mudança de percepção precisa acontecer na sociedade como um todo - é claro -, mas é urgente que comece pelos poderes constituídos. Há muitos anos se discute fontes extra tarifárias para o transporte público brasileiro, enquanto muitos países já adotaram o modelo e são exemplos. Mesmo assim, o Brasil não avançou. Agora, a crise econômica provocada pela pandemia de covid-19 parece estar apressando essa mudança no País, por incrível que pareça. O Brasil discute - desta vez formalmente no Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) e no Congresso Nacional - algumas propostas de financiamentos com fontes certas, criação de um fundo público e até de um marco legal para o transporte público - o que atenderia também aos sistemas BRTs do País.
Uma solução coletiva, que destine parte de taxas e impostos já cobrados da sociedade, por exemplo, é urgente. Manter o custo sobre o passageiro - que teve uma fuga permanente dos ônibus e metrôs de 30% a 40% devido às consequências da pandemia - é um erro histórico e que, parece, agora está sendo percebido pelo poder público - principalmente pelo governo federal, que é a esfera necessária para custear e determinar fontes. Tudo isso, é claro, com a garantia de contrapartidas do setor privado que opera os sistemas. Levantamento do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) aponta que o transporte coletivo no Brasil se mantém com R$ 59 bilhões ao ano, dos quais 89,8% vêm de tarifas cobradas dos passageiros. As subvenções públicas representam apenas 10,2% do montante, enquanto as receitas extra-tarifárias (como publicidade e locação de espaços, por exemplo) somam R$ 375 mil.
Esse inclusive, é o pensamento dos países estrangeiros, principalmente os europeus. Em parte dos EUA também. Nova York, por exemplo, trata o transporte coletivo metroviário e por ônibus como rei, destinando bilhões para os sistemas a partir de uma espécie de mix de impostos e taxas. Já o Brasil, segue vendo o transporte coletivo como uma atividade privada, que deve ter soluções como um negócio privado. Sem perceber a importância e o alcance social dele. Em Pernambuco, por exemplo, o custo do Sistema de Transporte Público de Passageiros da Região Metropolitana (STPP/RMR) é praticamente todo financiado pela tarifa do passageiro.
Em números oficiais de antes da pandemia, 85% do custo vinha da tarifa e apenas 15% eram de subsídios. Em 2021, inclusive, o subsídio do governo do Estado diminuiu em relação a 2020 e 2019. Passou de R$ 207 milhões e R$ 222 milhões, respectivamente, para R$ 131 milhões até meados de dezembro. Ainda considerando dados de antes da covid-19, o STPP custava R$ 1,3 bilhão por ano, dos quais R$ 1,1 bilhão vinha da tarifa. No Brasil, São Paulo seria a grande diferença: subsídios anuais superiores aos R$ 4 bilhões em 2021.
PROPOSTAS
O Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) criou o Fórum Consultivo de Mobilidade Urbana, composto por representantes da sociedade civil, técnicos e empresários do setor de transporte, para discutir saídas imediatas para a crise do transporte público nas cidades. Algo para ontem, já que o próprio governo federal não autorizou - apesar dos apelos - a liberação de um auxílio emergencial de R$ 4 bilhões ainda no primeiro ano da pandemia. As propostas devem ser divulgadas ainda no início de 2022. Entre elas, a criação do Vale Transporte Social, que daria gratuidade a pessoas de baixa renda, que estão cadastradas no CadÚnico. E o custeio da gratuidade dos idosos pela União, solução que foi apresentada pelos operadores.
Não só sobre o carro, via repasse de percentuais das taxas cobradas dos combustíveis e dos estacionamentos, por exemplo, mas também do setor imobiliário, extremamente beneficiado quando localizado próximo a corredores de transporte coletivo",Nazareno Affonso, do MDT
Rafael Calabria, coordenador do Programa de Mobilidade Urbana do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor), defende a proposta do VT Social, mas questiona a de custeio da gratuidade dos idosos. “A ideia é bastante interessante porque atrairia de volta para o serviço as pessoas excluídas pelo alto valor das tarifas de ônibus. Essa população passaria a se deslocar para acessar outros direitos, como procurar emprego, trabalhar, estudar, ir ao médico, além de fazer compras, se divertir etc. Ou seja, é a inclusão social por meio da mobilidade, que também geraria um impacto econômico positivo para as cidades. Já a proposta de custeio é difícil de ser implantada, mesmo apoiada pelos prefeitos, porque ela apenas transfere a responsabilidade para o governo federal. Ou seja, seria apenas uma injeção de recursos no setor, sem gerar nenhuma melhoria ou contrapartida. Além disso, essa iniciativa pode reforçar a crítica já existente a esse benefício”, alerta Calabria.
O técnico ainda destaca que a proposta é de difícil implementação porque os idosos não têm o acesso ao transporte vinculado ao bilhete eletrônico, sendo necessária apenas a apresentação do RG. “Como as prefeituras não possuem qualquer controle sobre o número de idosos que usam o serviço, a quantificação da proposta fica inviável”, reforça Calabria. Nazareno Affonso, diretor-executivo nacional do Instituto Movimento Nacional Pelo Direito ao Transporte Público de Qualidade para Todos (MDT), que propõe a criação do Sistema Único da Mobilidade Urbana Sustentável (SUM), o SUS da mobilidade, pensa como o Idec e ainda defende que a principal fonte extra tarifária deve vir do automóvel. “Não só sobre o carro, via repasse de percentuais das taxas cobradas dos combustíveis e dos estacionamentos, por exemplo, mas também do setor imobiliário, extremamente beneficiado quando localizado próximo a corredores de transporte coletivo", pontua.
MARCO LEGAL
Para além do socorro emergencial, está avançando no País também a discussão de um novo Marco Legal do transporte, proposta encabeçada pela Associação Nacional das Empresas de Transporte Urbanos (NTU). É apontada como solução imediata para evitar uma sequência de reajustes de tarifas que podem elevar o preço das passagens ou, no pior cenário, a falência generalizada dos sistemas de transporte coletivo urbano no País. O Projeto de Lei 3278/2021, de autoria do senador Antônio Anastasia (PSD-MG), reúne as ideias que propõem novas regras de custeio e contratação dos serviços. O PL foi apresentado ao Senado Federal em setembro, mas ainda não tem tramitação definida.
O setor está otimista. “Estamos há mais de um ano discutindo o apoio ao transporte público coletivo brasileiro e observamos que, finalmente, o governo federal começa a demonstrar sensibilidade e vontade de resolver a questão. A sinalização da criação do VT Social, feita pelo presidente Jair Bolsonaro, é um exemplo. A criação do fórum com várias entidades representativas para tratar a sustentabilidade do sistema é outra demonstração. Há uma sinalização de que é possível vir uma ajuda ainda nos primeiros meses de 2022, quando acontecem os reajustes tarifários”, afirma Otávio Vieira da Cunha, presidente executivo da NTU.
A proposta do Marco Legal para o transporte, segundo a NTU, é algo semelhante ao criado para o saneamento. É a maior aposta do setor para tentar reverter o prejuízo superior a R$ 17 bilhões acumulado desde o início da pandemia e a fuga do passageiro. O novo Marco Legal do transporte público tem três pilares: qualidade e produtividade, financiamento e regulação dos contratos. O primeiro transfere para o governo federal algumas responsabilidades que vão além da ajuda com a infraestrutura das cidades. O setor propõe que o governo federal defina parâmetros nacionais de eficiência e qualidade como referência para estados e municípios, tendo como base a Lei Nacional de Mobilidade Urbana. A aposta é que, assim, a imagem do setor, negativa por décadas para a população, possa melhorar.
O segundo pilar, de financiamento, foi dividido entre custeio e investimentos. O ponto central da proposta de custeio é a diferenciação entre a tarifa pública e a tarifa de remuneração do operador, que resolveria o principal entrave para a oferta de um serviço de qualidade. Na maior parte das cidades, o transporte público é custeado unicamente pela tarifa paga pelo passageiro, que arca sozinho com os altos custos do serviço. De acordo com a NTU, um ponto fundamental para equilibrar as tarifas pública e de remuneração é atacar a questão das gratuidades, que pesam 20% na média nacional dos custos dos sistemas. Se o governo federal assumisse a gratuidade dos idosos, por exemplo, haveria uma injeção de R$ 5 bilhões ao setor. Hoje, quem paga a gratuidade dos idosos é o passageiro pagante, geralmente aquele que paga a tarifa integral e, em muitos casos, sem direito ao vale-transporte, por exemplo.
Estamos há mais de um ano discutindo o apoio ao transporte público coletivo brasileiro e observamos que, finalmente, o governo federal começa a demonstrar sensibilidade e vontade de resolver a questão. A sinalização da criação do VT Social, feita pelo presidente Jair Bolsonaro, é um exemplo. A criação do fórum com várias entidades representativas para tratar a sustentabilidade do sistema é outra demonstração. Há uma sinalização de que é possível vir uma ajuda ainda nos primeiros meses de 2022, quando acontecem os reajustes tarifários”,afirma Otávio Vieira da Cunha, presidente executivo da NTU
Sob o aspecto financeiro, é proposto um tratamento tributário diferenciado, que o setor já pleiteia na Reforma Tributária. Esse tratamento diferenciado poderia representar 15% na redução de custos dos serviços. Para estruturar o custeio o setor propõe a criação de um fundo nacional do transporte público urbano que seria interfederativo e reuniria aportes das três esferas de governo: federal, estadual e municipal, além de fontes extra tarifárias de recursos.
É proposto, ainda, o reforço e a continuidade das linhas de financiamento oficiais existentes no BNDES (Finame), assim como o Pró-Transporte, operado com recursos do FGTS pela Caixa Econômica Federal (CEF). Os investimentos em infraestrutura nas cidades também seguiria. Em contrapartida, o setor investiria em parcerias público-privadas (PPPs).
SEGURANÇA JURÍDICA
O terceiro e último pilar do novo marco legal do transporte público recai sobre a regulação e os contratos de concessão. Assim, o setor propõe alterações na Lei de Mobilidade Urbana com a criação de um capítulo específico sobre transporte público coletivo. A ideia é acompanhar o que foi feito no marco do saneamento, aprovado no Congresso Nacional em 2020. A proposta do setor é a remuneração dos operadores baseada nos custos de produção atrelados a parâmetros de qualidade e produtividade.
Não só sobre o carro, via repasse de percentuais das taxas cobradas dos combustíveis e dos estacionamentos, por exemplo, mas também do setor imobiliário, extremamente beneficiado quando localizado próximo a corred
Nazareno Affonso, do MDTEstamos há mais de um ano discutindo o apoio ao transporte público coletivo brasileiro e observamos que, finalmente, o governo federal começa a demonstrar sensibilidade e vontade de resolver a questão. A sinalizaçã
afirma Otávio Vieira da Cunha, presidente executivo da NTU