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A morte do BRT: a tentativa de ressurgimento

No foco da segunda reportagem da série A morte do BRT, as mudanças que o Rio de Janeiro tenta implementar usando o BRT como projeto piloto

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Roberta Soares

Publicado em 19/12/2021 às 8:00 | Atualizado em 25/12/2021 às 20:01
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A segunda reportagem da série A morte do BRT fala de ressurgimento. Ao menos, da tentativa de alcançá-lo. E espelha-se no Rio de Janeiro, capital que foi uma das principais vitrines do BRT no País e, ainda mais, para o mundo, na época dos preparativos para a Copa do Mundo de 2014. Deveria ter quatro grandes corredores de BRT prontos, mas não conseguiu. Em operação, estão três. O Rio viu o sistema afundar como nenhum outro, impactado não só pela crise sanitária da covid-19, mas ainda antes, pela falta de investimentos, ingerências de todo tipo, perda de demanda e, principalmente, pela violência. Teve 46 das 126 estações fechadas. Agora, após intervenção pública, muitas e idas e vindas, e até prisões de gestores e operadores, busca novos caminhos com a remodelação da lógica - até então histórica - de gestão e operação em prática no transporte público brasileiro. E usa o sistema BRT como piloto para essa mudança. Dará certo? Não se sabe.

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Artes JC
A morte do BRT - Artes JC

DIVISÃO DE PODERES É A APOSTA DO RIO DE JANEIRO

O ponto principal da nova proposta de gestão e operação do BRT do Rio de Janeiro é, exatamente, separar essas duas atividades. Na prática, numa leitura simples para que o leitor entenda, separa para equilibrar forças, dividir poderes. Diminui o controle operacional, que historicamente ficou nas mãos dos empresários de ônibus, e amplia a participação do poder público. Divide os contratos de operação, frota de veículos e bilhetagem eletrônica, que sempre estiveram juntos, sob controle das empresas. Para quem não sabe, o Rio tem três BRTs em operação e um quarto ainda na promessa: TransOeste, o primeiro e maior deles (60 km), o Transcarioca, que faz conexão com o Aeroporto Internacional Tom Jobim (Galeão), na Ilha do Governador (com 39 km), e o TransOlímpica, implantado para atender aos Jogos Olímpicos de 2018, com 26 km. O TransBrasil, que teria a maior demanda dos quatro, cortando a Avenida Brasil, foi iniciado ainda em 2015, mas não avançou. Foi retomado em agosto de 2021.

A Prefeitura do Rio de Janeiro aposta na nova modelagem, que será implantada em três fases: a locação de frota, possibilitando a substituição gradativa dos ônibus antigos, e a concessão da operação do sistema. Anteriormente, a busca por um parceiro privado para a bilhetagem eletrônica. A gestão garante que o novo formato possibilitará uma melhora do serviço prestado à população, com mais veículos, menos lotação e intervalos menores entre os ônibus. Promessas - é importante alertar - comuns no setor toda vez que inovações ou alterações são promovidas. O controle da bilhetagem eletrônica é a terceira parte, também com um contrato de concessão diferente da operação e da frota de veículos.

ARTES/JC
1712brt_WEB - ARTES/JC


O modelo prevê que a Prefeitura do Rio de Janeiro pague um aluguel pela frota de veículos - no primeiro momento, BRTs - à futura concessionária, que será diferente da que assumirá a operação do sistema. O prefeito Eduardo Paes afirmou que, com a nova lógica, a gestão tira um custo dos operadores e passa a exigir mais qualidade nos veículos. “Não tenho dúvidas de que, com esse novo sistema, vamos trazer mais dignidade e respeito à população que usa o transporte público no Rio de Janeiro. Nós estamos dando uma solução definitiva para a operação adequada do sistema BRT. Esse novo modelo permite à futura concessão da operação uma garantia de um aporte importante ao sistema, com a prefeitura alugando os ônibus, tirando um custo dos operadores”, aposta.

Em resumo, o BRT carioca terá duas concessionárias: uma para a frota de veículos e outra para a operação do sistema. A futura concessionária ficará responsável pela aquisição dos novos ônibus e pela inspeção da manutenção a ser realizada pelo operador do sistema. O município, então, pagaria mensalmente ao locador pela frota disponibilizada durante o período do contrato. A previsão era de que a primeira licitação - para a frota de BRTs - saísse ainda em 2021, enquanto a segunda - para a operação em si - ficaria para janeiro de 2022. Com a nova modelagem, o Rio de Janeiro aposta alto. Pretende não só apagar a imagem negativa que o BRT adquiriu para a cidade e o mundo - resultado do abandono a que chegou -, mas tornar o sistema referência internacional em qualidade do serviço prestado e conforto para os passageiros. Antes, logicamente, busca atrair mais passageiros para o transporte público.

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BRT Rio de Janeiro teve 46 estações fechadas devido à degradação e violência - DIVULGAÇÃO
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BRT Rio de Janeiro teve 46 estações fechadas devido à degradação e violência - DIVULGAÇÃO
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BRT Rio de Janeiro está tentando se reerguer após fechamento, degradação e até intervenção pública - DIVULGAÇÃO
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BRT do Rio de Janeiro retomou a operação com a reabertura das 46 estações fechadas e vandalizadas - DIVULGAÇÃO
Arquivo NTU
BRT Rio de Janeiro está tentando se reerguer após fechamento, degradação e até intervenção pública - Arquivo NTU

RECEPTIVIDADE

A modalidade é inédita no Brasil e, pelo menos entre estudiosos do transporte público, está sendo elogiada. Avanços são identificados, principalmente, pela divisão de poder. O modelo de licitação é apontado como inovador. “No modelo padrão do transporte público brasileiro, os empresários de ônibus dominam todo o serviço: frotas, garagens, trabalhadores, etc. Assim, controlam tudo e têm um enorme poder de coerção, por ameaça de locaute, caso seus interesses sejam contrariados. Além de dificultar a concorrência. Por décadas, isso gerou os cartéis encastelados nas cidades brasileiras, com predomínio sobre as câmaras, prefeituras e órgãos de transporte. Romper isso é muito difícil, nem os processos formais de licitação tradicionais conseguiram melhorar esse cenário de décadas. Ao dividir os contratos, rompe-se com essa lógica”, avalia o coordenador do Programa de Mobilidade do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor), Rafael Calabria.

Para o geógrafo, a divisão das responsabilidades é o ponto principal. “Uma empresa é dona da frota e outra opera os veículos, sem as garagens. Dois contratos menores, específicos, simples, com menos poder na mão de empresários. Se um parar, a prefeitura tem outro ativo para achar soluções emergenciais. Rompe-se a lógica e a prefeitura tem mais poder de controle, além de transparência nas contas. O modelo foi adotado na Ásia e Oceania, e recentemente em Bogotá, na Colômbia, e em Santiago, no Chile. O Rio vai ser a primeira cidade do Brasil”, afirma. A aposta é grande. “A separação da bilhetagem eletrônica também é importante para que o poder público tenha acesso. Por isso o modelo é bom. Representa uma visão bastante completa e exige base técnica. É um baita desafio, mas tem tudo para dar certo. E pode ser um modelo para ser adotado nacionalmente, mudando todo o sistema de transporte público”, reforça Calabria.

DESCONFIANÇA

Já entre os operadores de transporte público a resistência começa a ficar evidente. Muitos, sem querer opinar oficialmente, têm dúvidas se a divisão das atividades funcionará. A primeira licitação lançada recentemente para definir a nova concessionária da operação e gestão do sistema de bilhetagem eletrônica, por exemplo, deu deserta - expressão para dizer que não houve interessados. O caso, inclusive, foi parar na Justiça, com o setor empresarial tentando impedir a realização da concorrência pública.

No modelo padrão do transporte público brasileiro, os empresários de ônibus dominam todo o serviço: frotas, garagens, trabalhadores, etc. Assim, controlam tudo e têm um enorme poder de coerção, por ameaça de locaute, caso seus interesses sejam contrariados. Além de dificultar a concorrência. Por décadas, isso gerou os cartéis encastelados nas cidades brasileiras, com predomínio sobre as câmaras, prefeituras e órgãos de transporte. Romper isso é muito difícil, nem os processos formais de licitação tradicionais conseguiram melhorar esse cenário de décadas. Ao dividir os contratos, rompe-se com essa lógica”,
Rafael Calabria, coordenador do Programa de Mobilidade do Idec

 

IDEC/DIVULGAÇÃO
No modelo padrão do transporte público brasileiro, os empresários de ônibus dominam todo o serviço: frotas, garagens, trabalhadores, etc. Assim, controlam tudo e têm um enorme poder de coerção. Ao dividir os contratos, rompe-se com essa lógica", Rafael Calábria, do Idec - IDEC/DIVULGAÇÃO

MODELO ELÉTRICO

O modelo que o Rio de Janeiro tenta adotar é o mesmo que vem sendo implementado na transição para o transporte público elétrico. E com sucesso. Pelo menos fora do País, como é o caso do Chile e da Colômbia. A propriedade e a gestão das frotas de coletivos e garagens têm contratos separados para otimizar a operação. O município, o Estado ou os consórcios metropolitanos, por exemplo, adquirem a frota de veículos e o setor privado fica na operação. O Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP), referência mundial no setor, fez um amplo estudo sobre a modelagem e concluiu que ela reduziria custos porque significa a partilha dos riscos, que nos contratos brasileiros atuais ficam todos com o setor privado, engessando possíveis inovações no setor.

No caso do transporte elétrico - alvo do estudo do ITDP - a inclusão de outros atores nos contratos além dos tradicionais do setor de transporte também é destacada. Os novos atores podem ser da iniciativa privada, como companhias de energia e instituições bancárias - pelo menos no caso da mobilidade elétrica. Em Santiago, no Chile, a companhia energética local foi quem adquiriu os veículos elétricos.

Tal medida faz com que os impactos gerados pela pandemia não sejam transferidos aos usuários, mas financiados pelo poder público. Os investimentos precisam ser feitos independentemente do número de passageiros, eliminando o atual círculo vicioso que vem destruindo o transporte público brasileiro. Tal situação ocorre, em regra geral, quando o custo do transporte é 100% coberto pelas tarifas cobradas dos usuários, diferentemente do que ocorre em outros países”. Mas é importante que essa diretriz venha acompanhada de novas fontes de financiamento”,
Miguel Ângelo Pricinote, coordenador do Mova-se Fórum de Mobilidade


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Miguel Angelo Pricinote - Mova-se Fórum de Mobilidade - DIVULGAÇÃO

OUTROS AVANÇOS

Outras mudanças na modelagem da proposta para o BRT do Rio de Janeiro também receberam elogios. A separação da tarifa pública, aquela cobrada diretamente do passageiro, da tarifa de remuneração, que envolve a receita de outras fontes de custeio, é uma delas. No novo modelo, a remuneração do operador deixa de ser baseada no número de passageiros e passa a considerar a quilometragem rodada. O que, no entendimento de muitos, representa o custeio efetivo do serviço que foi, de fato, prestado pelos operadores.

Para o geógrafo e mestre em Transportes pela Universidade de Brasília (UnB), Miguel Ângelo Pricinote, coordenador do Mova-se Fórum de Mobilidade, sediado em Goiânia (GO) e que une estudiosos e peritos em mobilidade e transportes, as diretrizes são corretas. “Tal medida faz com que os impactos gerados pela pandemia não sejam transferidos aos usuários, mas financiados pelo poder público. Os investimentos precisam ser feitos independentemente do número de passageiros, eliminando o atual círculo vicioso que vem destruindo o transporte público brasileiro. Tal situação ocorre, em regra geral, quando o custo do transporte é 100% coberto pelas tarifas cobradas dos usuários, diferentemente do que ocorre em outros países”. Mas é importante que essa diretriz venha acompanhada de novas fontes de financiamento”, ressalta.

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BRT Curitiba, berço mundial do sistema, segue firme e forte. Gestão agiu para evitar degradação - DIVULGAÇÃO
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BRT Curitiba, berço mundial do sistema, segue firme e forte. Gestão agiu para evitar degradação - DIVULGAÇÃO
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BRT Move de Belo Horizonte enfrentou pouca degradação. Nada comparado a Pernambuco e ao Rio de Janeiro - DIVULGAÇÃO
Alexandre Maciel
Sorocaba, no interior de São Paulo, tem a primeira PPP de BRT em que o operador constrói o corredor e faz a operação - Alexandre Maciel
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BRT Move de Belo Horizonte enfrentou pouca degradação. Nada comparado a Pernambuco e ao Rio de Janeiro - DIVULGAÇÃO

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No modelo padrão do transporte público brasileiro, os empresários de ônibus dominam todo o serviço: frotas, garagens, trabalhadores, etc. Assim, controlam tudo e têm um enorme poder de coerção, por ame

Rafael Calabria, coordenador do Programa de Mobilidade do Idec
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Tal medida faz com que os impactos gerados pela pandemia não sejam transferidos aos usuários, mas financiados pelo poder público. Os investimentos precisam ser feitos independentemente do número de passageiros, eliminando o atu

Miguel Ângelo Pricinote, coordenador do Mova-se Fórum de Mobilidade

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