Os desafios de Raquel Lyra para reduzir a violência em Pernambuco
Primeira mulher eleita governadora de Pernambuco, Raquel tem missão de reformular programa de segurança para combater criminalidade e diminuir assassinatos
A partir de 1º de janeiro de 2023, Raquel Lyra (PSDB) será a primeira mulher governadora de Pernambuco. E há muitos desafios pela frente na área da segurança pública. A começar por uma reformulação no já desgastado programa Pacto pela Vida, que completou 15 anos.
A primeira (e principal) meta de Raquel Lyra na segurança é reduzir o número de assassinatos. E para isso, como se sabe, é preciso mais investimentos em repressão e em prevenção à violência. A coluna Ronda JC traz, abaixo, uma análise da situação de Pernambuco e dos desafios que a futura governadora vai enfrentar.
REDUÇÃO DE HOMICÍDIOS É NECESSIDADE URGENTE
Entre os anos de 2017 e 2021, Pernambuco somou 20.198 assassinatos. Está muito distante de ser um resultado aceitável. Ainda mais quando, há 15 anos, existe um programa de segurança pública - o Pacto pela Vida - que monitora semanalmente os índices de violência para que sejam refeitas as estratégias de policiamento, repressão e prevenção aos crimes.
Em média, dez pessoas são assassinadas por dia. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública colocou Pernambuco como o 5º Estado mais violento do País. O resultado teve como base os homicídios em 2021.
A promessa de redução anual de 12% na taxa de homicídios no Estado poucas vezes se concretizou nos últimos 15 anos. Para citar como exemplo, Pernambuco registrou 3.100 mortes em 2013 - o menor número do Pacto pela Vida. Já em 2017, somou 5.428 assassinatos - o pior resultado da história.
De acordo com a Secretaria de Defesa Social (SDS), 70% dos assassinatos em Pernambuco têm relação com as atividades criminais - como o tráfico de drogas.
"A violência está relacionada à ilegalidade do tráfico de drogas, que cresce recrutando uma grande quantidade de jovens. O tráfico é muito lucrativo. O crescimento de homicídios acaba sendo consequência inevitável", explicou, em recente entrevista, o sociólogo Luiz Flávio Sapori, um dos colaboradores na criação do Pacto pela Vida.
O avanço do crime organizado em Pernambuco, especializado no tráfico de drogas, tem preocupado a polícia nos últimos anos por causa da relação com a explosão de homicídios a partir de 2017.
A socióloga Edna Jatobá, coordenadora executiva do Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (Gajop), destacou que, de janeiro a junho deste ano, 499 pessoas morreram vítimas de tiro na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Enquanto na Região Metropolitana do Recife (RMR) foram 708. Em compensação, no mesmo período, o número de tiroteios no Rio foi 1.828 e na RMR foi 896.
"Com esses números, a gente percebe que aqui (na RMR) se gasta menos munição para abater a população. Isso acontece porque há mais pessoas marcadas para morrer, seja por disputa de território ou dívida de drogas. Há também mais mortes dentro ou na frente de casa. São vítimas que muitas vezes não registram boletins de ocorrência por ameaça. É preciso investimento em inteligência policial para prender as facções que crescem no Estado e proteger a vida das pessoas", afirmou Edna.
O sociólogo Luiz Flávio Sapori, que contribuiu com a elaboração das diretrizes do Pacto pela Vida, tem pensamento semelhante sobre o trabalho que deve ser adotado pelas forças de segurança no combate ao crime.
"Não basta colocar policiais nas ruas se não houver uma distribuição desses policiais nos locais, nos horários, nos momentos onde o crime acontece. É fundamental um policiamento mais inteligente, um policiamento orientado para solução de problemas, um policiamento focado nas zonas mais quentes de criminalidade. A tarefa é colocar essas metodologias em prática."
ALERTA PARA MAIOR CIRCULAÇÃO DE ARMAS
O aumento da circulação de armas de fogo nos últimos três anos e meio, graças à flexibilização das normas a partir de decretos assinados pelo governo de Jair Bolsonaro, governo federal, é outra preocupação no combate aos homicídios. Já há casos registrados em vários partes do País que mostram que armas legalizadas estão caindo nas mãos de criminosos.
Em 2021, segundo a Secretaria de Defesa Social (SDS), 81,4% dos 3.368 assassinatos em Pernambuco foram praticados com uso de arma de fogo. Em 2020, o porcentagem foi de 81%. No ano anterior, 79%.
"A média nacional de vítimas que morrem por arma de fogo é de aproximadamente 75%. Mas em Pernambuco esse índice já está acima de 81%. Tem cidades do Estado que passam de 90%", alertou a socióloga Edna Jatobá.
Até poucos meses, o governo de Pernambuco não dispunha de dados para identificar se aquela arma de fogo ou projétil apreendido em local de crime de homicídio tinha origem legal ou não - o que, infelizmente, dificulta comprovar a relação com o aumento da circulação de armas.
Mas, no segundo trimestre deste ano, a Polícia Científica de Pernambuco começou a usar um equipamento para rastrear munições e fazer a correlações com outros casos para saber se a mesma arma foi utilizada em mais crimes. O aparelho, adquirido a partir de convênio com o Ministério da Justiça e Segurança Pública, pode ajudar também a apontar a origem da munição analisada.
Em 2020, a Polícia Federal em Pernambuco recebeu 502 solicitações para porte de armas. Houve 126 concessões. Já no ano passado, houve mais 784 pedidos. E 285 deferimentos.
Em relação à posse de armas (quando elas devem guardadas em casa, por exemplo), houve 7.847 registros nos últimos dois anos.
ESTADO PRECISA INVESTIR EM PREVENÇÃO
O combate aos grupos criminosos que estão instalados - e avançam - em Pernambuco é fundamental para reduzir a violência, principalmente os homicídios. Mas o governo estadual não pode deixar de lado os investimentos em prevenção e cultura de paz, com apoio dos municípios.
Em 2021, segundo a Secretaria de Defesa Social, 1.543 jovens (com idades entre 18 e 29 anos) foram assassinados. O número representa 45,81% do total de pessoas mortas em Pernambuco. Além disso, 215 adolescentes também foram vítimas.
O recorte precisa ser estudado com atenção para a criação de políticas públicas que evitem que esses adolescentes e jovens em situação de vulnerabilidade sejam facilmente cooptados para ingressar em facções especializadas no tráfico de drogas. Ou, ainda que somente como consumidores de entorpecentes, eles percam a vida em pouco tempo.
"É medida fundamental a prevenção social. O trabalho precisa ser ampliado para as grandes regiões do Estado. Projetos artísticos, culturais e esportivos que ofereçam ao adolescente, ao jovem, a oportunidade de construir uma história de vida que não seja pela atração do tráfico. Isso porque o tráfico não é só o dinheiro. Ele oferece o sentimento de grupo, de pertencimento para o adolescente que muitas vezes é excluído da sociedade", afirmou o sociólogo Luiz Flávio Sapori.
Apesar de, desde 2019, contar com a Secretaria de Políticas de Prevenção à Violência e às Drogas, a gestão do governador Paulo Câmara não criou nenhum novo programa para combater o uso dos entorpecentes entre os mais vulneráveis.
Também não reciclou o Atitude, criado há mais de uma década na gestão Eduardo Campos. No ano passado, de acordo com dados da Secretaria Estadual de Planejamento, 13.429 pessoas foram atendidas pelo programa. Desse total, 12.004 precisaram de ajuda por causa do consumo do crack.
O Cabo de Santo Agostinho, no Grande Recife, é um município que vem chamando a atenção, desde 2020, por causa da alta dos números da violência. Naquele ano, apresentou taxa de 90 mortes por 100 mil habitantes - segundo lugar no ranking das cidades brasileiras mais violentas, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
A disputa entre grupos criminosos pelo domínio de território é apontada pela polícia como motivação para o crescimento dos homicídios.
No ano passado, a violência no Cabo continuou muito alta: foram 178 assassinatos. E 60,11% das vítimas tinham idades entre 12 e 29 anos - em sua maioria que vivia em situação de vulnerabilidade e tinha relação com as drogas, segundo a polícia.
Cientista social e mestre em sociologia Matheus Mariano conhece bem a realidade do Cabo de Santo Agostinho e aponta a falta de políticas públicas como principal responsável por tantas mortes de adolescentes e jovens.
"A vulnerabilidade juvenil é construída por diversas ausências de ações efetivas da prefeitura e do governo do Estado. Isso se deve aos impactos da reorganização urbana causada pela construção do Complexo Portuário de Suape, à má distribuição de renda, limitações no sistema escolar, falta de equipamentos de cultura e lazer", pontuou.
"Prevenção e repressão qualificada são elementos que o poder público deve construir costurando entre o nível municipal e estadual. É preciso utilizar dados para elaborar políticas direcionadas, garantir orçamento público, garantir a transparência e considerar as pautas levantadas pela sociedade civil", completou Matheus.
SISTEMA PRISIONAL CONTINUA EM COLAPSO
O sistema prisional de Pernambuco nunca recebeu a devida atenção do poder público. O número de presos mais que triplicou em 15 anos e a quantidade de vagas nos presídios não cresceu na mesma proporção.
Segundo dados da Secretaria Executiva de Ressocialização (Seres), há 34.610 detentos no regime fechado ou semiaberto. E o total de vagas é de apenas 13.842.
O sociólogo Luiz Flávio Sapori reforçou que o investimento no sistema prisional é um desafio.
"Esse problema não foi devidamente enfrentado pelo Pacto pela Vida o longo do tempo. Pernambuco tem um nível muito elevado de superlotação. O grau de profissionalização das prisões deixa muito a desejar. Pernambuco não pode colocar o sistema prisional como coadjuvante do Pacto pela Vida. É fundamental que seja diminuída a violência para o sistema não se torne um 'home office' do crime", declara.
A falta de controle é tão grande nos presídios - e reconhecida pelo Estado - que, em grande parte das operações de repressão às facções criminosas, mandados de prisão são cumpridos nos próprios presídios. Isso porque, mesmo atrás das grades, detentos continuam atuando no mundo do crime livremente.
O Complexo Prisional do Curado, na Zona Oeste do Recife, é o maior exemplo da situação desumana e caótica em que vivem os detentos no Estado. Formado por três presídios, o Complexo abriga 6.508 detentos, apesar de só ter 1.819 vagas. Membros do Conselho Nacional de Justiça ficaram estarrecidos com o que viram em visita às unidades em agosto deste ano.
O Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE) está fazendo mutirão para analisar processos dos presos e tentar desafogar as unidades. Em contrapartida, o Estado promete abertura de mais vagas em presídios que estão em construção.
DELEGACIAS PRECISAM ESTAR ABERTAS 24H
Não são apenas os números da violência que causam a sensação de insegurança na população que vive em Pernambuco. Saber que a delegacia do bairro ou a única do município está fechada à noite e nos fins de semana também preocupa bastante. E, nos últimos anos, a interrupção do funcionamento das unidades policiais tem sido cada vez mais comum. Sem contar a falta de estrutura física necessária para o trabalho dos policiais civis.
Em geral, as delegacias ficam abertas de segunda a sexta-feira, das 8h às 18h. Fora desse horário, apenas unidades policiais de plantão. E são poucas, principalmente no interior de Pernambuco. A opção é registrar a queixa no site da Secretaria de Defesa Social (sds.pe.gov.br), mas, a depender do crime, isso não é possível. Ou seja, a vítima que encontrar a delegacia fechada precisa seguir para outra cidade onde há plantão 24h.
Nos casos de prisão em flagrante, à noite e nos fins de semana, a situação também é bem complicada. Com efetivo policial já reduzido, PMs precisam se deslocar das cidades onde estão lotados até uma que tenha delegacia aberta para entregar o preso e registrar a ocorrência. Um processo que pode levar horas.
No Grande Recife, há quatro delegacias especializadas para atendimento à mulher. Apenas a do bairro de Santo Amaro, na área central da capital, é 24h.
Inaugurada em junho deste ano, a Delegacia da Mulher de Olinda, no bairro de Casa Caiada, só funcionava em horário comercial. Um mês depois, após críticas, a Polícia Civil autorizou a abertura das 19h da sexta-feira às 7h da segunda. Ainda assim, de segunda à quinta-feira, o horário segue só até 18h.
FALTA DE EFETIVO POLICIAL É MAIS UM PROBLEMA
O efetivo de policiais militares diminuiu. E esse é um grande desafio que a nova governadora enfrentará quando assumir a partir de janeiro de 2023. Atualmente, segundo dados da Lei de Acesso à Informação, há 16.722 PMs na ativa. O número mínimo ideal seria de 27.672, ou seja, há um déficit histórico de quase 11 mil militares. Vale lembrar ainda que parte desses profissionais da ativa fazem trabalhos administrativos, ou seja, estão fora das ruas.
A socióloga Edna Jatobá reforçou que a ausência do policiamento ostensivo por todas as regiões de Pernambuco também contribui para a elevação da violência.
"Muitas das cidades do interior tem efetivo policial muito baixo, porque são deixadas de lado em detrimento das cidades com violência mais acirrada. Mas vários municípios do interior sobraram o número de mortes no primeiro semestre deste ano, por exemplo. É preciso um olhar atento para isso", disse.
Levantamento do JC mostrou que 21 municípios do interior registraram mais assassinatos no primeiro semestre de 2022 do que em todo o ano de 2021. O detalhe é que, além do baixo policiamento, as delegacias dessas cidades não funcionam 24h.
O déficit de profissionais atinge todas as forças de segurança de Pernambuco. Na Polícia Civil, há 3.548 agentes na ativa. Faltam 4.752 para completar o número ideal. Talvez isso explique a quantidade enorme de delegacias fechadas à noite e nos fins de semana. Há também um déficit de 180 delegados.
A Secretaria de Defesa Social (SDS) promete minimizar o problema com o lançamento, neste segundo semestre, de concursos em todas as áreas da segurança. Na prática, como há várias etapas na seleção e nos cursos de formação, os novos profissionais só devem ingressar nas policiais no segundo semestre de 2023 ou em 2024.