De saída após 4 anos à frente da Secretaria de Saúde de Pernambuco, com passagem pela maior crise sanitária e hospitalar vivida em todo o mundo, o médico cardiologista André Longo, 51 anos, traça balanço da gestão, fala sobre ações que estão encaminhadas no Estado e diz ter deixado um legado da pandemia. Ao longo de 1h30 de entrevista concedida à jornalista Cinthya Leite na sede da Secretaria Estadual de Saúde, no Bongi (Zona Oeste do Recife), André Longo se emocionou em alguns momentos, disse que espera novas concretizações do futuro governo e informa que retornará para a atividade médica no Procape. "Montamos uma capacidade de resposta em Pernambuco, da qual me orgulho muito. As medidas adotadas aqui salvaram milhares de vida, sem dúvidas", ressaltou, emocionado, André Longo.
JC - Ao longo destes quatro anos à frente do comando da Saúde de Pernambuco, o senhor driblou desafios e enfrentou a maior crise sanitária e hospitalar, com a pandemia. Nesta atual fase da covid-19, qual o sentimento ao passar o bastão?
ANDRÉ LONGO - Uma área como a saúde tem que rodar por 24 horas. Então, na primeira hora do dia 1º de janeiro, é preciso sabermos quem estará à frente da assistência. Por exemplo: quem será o diretor do Hospital da Restauração, do Agamenon Magalhães? Os serviços que funcionam 24 horas precisam já ter um comando. Quem será esse comando? É essencial conversar antes com essa pessoa, sem que fique muito em cima (de assumir cargos). É preciso valorizar a memória institucional, principalmente de coisas mais recentes, como o enfrentamento à covid-19.
JC - Qual o balanço que o senhor faz desse período como secretário de Saúde do Estado, após ter passado pela presidência do Sindicato dos Médicos de Pernambuco, do Conselho Regional de Medicina de Pernambuco e da Agência Nacional de Saúde Suplementar?
ANDRÉ LONGO - Não há como falar desta gestão de 4 anos sem lembrar o impacto da pandemia, que chegou e alterou completamente o planejamento. Em todo primeiro ano de gestão do Sistema Único de Saúde (SUS), analisamos o orçamento, o planejamento do gestor anterior. Primeiramente, desenhamos o que seria feito em cada uma das áreas. Mas, em 2019, quando assumimos, ninguém imaginava que viria a pandemia. A partir daí, toda a atenção foi voltada para a covid. Muitas coisas que estavam no planejamento, em 2019, tiveram que ser postergadas pelo impacto da pandemia. Montamos uma capacidade de resposta em Pernambuco, da qual me orgulho muito. As medidas adotadas aqui salvaram milhares de vida, sem dúvidas.
JC - Qual o tamanho da cobrança na Saúde?
ANDRÉ LONGO - Houve conjunto de medidas para a montagem de nova governança da crise. O governador Paulo Câmara montou um gabinete envolvendo todas as secretarias. Não era um problema só da Saúde. A Saúde liderava toda a questão, mas a pandemia afetou toda sociedade. E o gabinete envolvia uma abordagem sistêmica. Então, montamos a maior mobilização de recursos humanos, de equipamentos, insumos, leitos de terapia intensiva (UTI).
JC - Muitas vezes, em coletivas de imprensa, o senhor mencionou a missão de "trocar o pneu com o carro em movimento". Como foi esse trabalho?
ANDRÉ LONGO - Lembro que, em 2019, o Ministério Público de Pernambuco (MPPE) havia feito um termo de ajustamento. A recomendação para o Estado era montar 100 leitos de UTI; era uma meta que tínhamos. E quão pequenos ficaram 100 leitos de UTI em 2020... No auge da pandemia em Pernambuco, em maio/junho de 2021, chegamos a ter 1.812 leitos de UTI dedicados à srag (síndrome respiratória aguda grave). A Saúde nunca esteve tão em evidência como naquele momento e agora. Nunca houve tanta responsabilidade com autoridade sanitária como atualmente. Em 100 anos, nunca houve isso. Fomos alçados a uma condição que tinha que dar respostas diárias a mais complexas situações. Opinávamos sobre educação, transporte público. A Saúde passou a interagir e a determinar o funcionamento de todas as áreas. As demandas e cobranças eram enormes.
JC - Deu para ter resiliência neste momento?
ANDRÉ LONGO - Tinha perfeita noção do contexto histórico da responsabilidade daquele momento. Busquei forças, tive apoio da família. O fato de ter adoecido naquele momento foi delicado (André Longo foi infectado pelo coronavírus em 2020, na primeira onda da pandemia); não sabia como iria evoluir. Era como Demetrius (infectologista) dizia: 'é uma loteria'. Não sabia quem evoluiria bem, mal. Eu tinha o fator de risco da obesidade, da hipertensão. Naquele momento, queríamos um médico para dar esperanças aos pacientes, à população. E a gente, enquanto gestor, buscava também mostrar a realidade. Nunca abrimos mão da transparência, sempre com o olhar amparado na ciência, com o que os dados da covid-19 mostravam. A falta de coordenação federal, a falta de um processo que pudesse unificar o País para a resposta também cobraram muito aos Estados. Cobrou-se mais dos Estados, que tiveram que coordenar a resposta à pandemia junto aos municípios. Pernambuco buscou fazer uma resposta condizente com o tamanho do problema, do desafio.
JC - Foi mais difícil chegar ao interior do Estado durante estes quatro anos?
ANDRÉ LONGO - No pico da pandemia, tínhamos a segunda menor taxa de mortalidade. Isso foi em 2021. Nós achamos ser fundamental que, desse processo, ficasse um legado em termos de assistência. E nesse ponto, a gente conseguiu interiorizar essa resposta. Além dos hospitais de campanha, montados inicialmente, colocamos leitos de terapia intensiva em regiões que nunca tinham tido leito de UTI. Citamos Afogados da Ingazeira (Sertão), onde hoje há 10 leitos. Estamos construindo a UTI lá para ficar com 20 leitos de UTI em definitivo. O hospital, ao todo, tinha 62 leitos; hoje tem 124. Esse olhar para o interior veio graças ao governador Paulo Câmara, que deu autonomia para trabalharmos o interior. Também no Sertão, montamos UTI pediátrica em Salgueiro, e isso é um legado.
JC - E o Hospital Eduardo Campos, em Serra Talhada?
ANDRÉ LONGO - Sim, ainda tem o Hospital Eduardo Campos, em Serra Talhada. Foi aberto em junho de 2020. Numa primeira etapa, ele chegou a ter 100 leitos para covid. O projeto original do hospital era ter 10 vagas de UTI adulto e 10 pediátricas. Mas já tem 40 leitos de UTI, o que é fruto dessa resposta à covid. A emergência desse hospital tem tudo o que se possa imaginar: ultrassom, raio-x, tomógrafo, salas cirúrgicas. Como sertanejo, fico até emocionado de entregar um equipamento como esse à população. Está ficando um legado.
JC - Além do Sertão, que outra região conta com um legado da pandemia?
ANDRÉ LONGO - Em Caruaru (Agreste), temos o Hospital Mestre Vitalino, que tinha 140 leitos quando foi inaugurado. Hoje tem 400 leitos. Há ainda o serviço de cardiologia e hemodinâmica. Antes disso, os pacientes com infarto agudo do miocárdio vinham à Região Metropolitana do Recife. Agora não precisa mais. No Mestre Vitalino, fazem tudo; inclusive cirurgia cardíaca. Queremos isso para as terceira e quarta macrorregião de saúde. Obviamente que avançamos. E sim, poderíamos ter avançado mais sem a pandemia. Mas é também nos momentos de adversidades que se constroem soluções.
JC - Então, o senhor considera que essa ampliação da rede e serviços é o maior legado da pandemia para Pernambuco? Isso pode se perder?
ANDRÉ LONGO - Estamos deixando 500 leitos de UTI. Ao todo, estamos com 1.500 leitos (considerando também as vagas de enfermaria). Claro que muitos estão dedicados à srag, mas estamos virando para leitos operacionais, que não são mais srag. O que estamos desenhando é que, ao término da resposta à pandemia, fiquem 1.500 leitos não srag. Isso é um processo em curso, e a próxima gestão precisa definir algumas questões.
JC - Como o senhor avalia a parceria da gestão estadual com os municípios?
ANDRÉ LONGO - Foi alimentada, ao longo da historia de Pernambuco, um paternalismo estadual dos serviços que não vemos em outros Estados. No Ceará, por exemplo, o Frotão, que é equivalente ao nosso Hospital da Restauração por ser o maior equipamento de emergência do Estado, é de administração municipal. Aqui em Pernambuco, até pouco tempo, municípios grandes não tinham hospital. Nos grandes municípios, as redes são muito dependentes do Estado; isso é característica de Pernambuco. É por isso que a responsabilidade de quem senta nesta cadeira (de secretário) é muito maior. Além de planejador, de coordenador de política de saúde, somos o executor da política. Isso não é mais assim em vários Estados.
JC - Qual será o maior desafio para quem estará à frente da Saúde em Pernambuco nos próximos quatro anos?
ANDRÉ LONGO - Vamos pensar, a título de exemplo, nas doenças crônicas não transmissíveis, como diabetes e hipertensão. Elas demandam hoje um crescimento na assistência em velocidade maior do que a capacidade. Você não tem tido acompanhamento do financiamento público da Saúde a nível federal. Atualmente, 16,8% das receitas correntes líquidas são aplicadas em Saúde em Pernambuco, num cenário em que o governo federal não tem aportado mais recursos. Estados e municípios não vão conseguir dar conta sozinhos. Então, o desafio é fazer um novo pacto federativo em termos de financiamento da Saúde. Vivemos uma mistura de cenários epidemiológicos: doenças infecciosas, negligenciadas, dificuldades na área materno-infantil e crescimento das doenças crônicas não transmissíveis. Então, precisa-se organizar o sistema para dar conta dessas demandas. Pernambuco está preparado para isso.
JC - E como está o diálogo com a equipe de transição do governo eleito de Raquel Lyra para a passagem desse bastão?
ANDRÉ LONGO - Desejo que a próxima gestão possa dar continuidade a projetos importantes, já iniciados por nós. Estamos passando tudo para a transição com muito cuidado. Antes de ser secretário e de ter uma posição política, sou servidor público de Pernambuco. A gente quer que dê certo.
JC - Quais são os seus próximos passos?
ANDRÉ LONGO - Pretendo voltar para a atividade médica, para o Procape (Pronto-socorro Cardiológico de Pernambuco), que é a minha base. Tenho dois vínculos públicos: sou servidor público da Universidade de Pernambuco e da Secretaria Estadual de Saúde. Pretendo juntar os dois vínculos em um, fazendo isso no Procape, que é mais focado em cardiologia. Gosto muito de atender os pacientes. Farei um 'up to date' na minha especialidade. Preciso de quatro a seis meses para fazer isso e retomar as atividades.
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