Um levantamento inédito identificou 1.171 casos de violência contra defensores de direitos humanos no País entre os anos de 2019 e 2022, período do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro. Nesse número estão incluídos 169 assassinatos de defensores.
O estudo "Na Linha de Frente: violência contra defensores e defensoras de direitos humanos no Brasil" considerou oito tipos de violência: ameaça, agressão física, assassinato, atentado, criminalização, deslegitimação, importunação sexual e suicídio.
Para as organizações Terra de Direitos e Justiça Global, responsáveis pelo levantamento, os dados mostram o acirramento de conflitos territoriais e ambientais no País. Dos 169 defensores mortos, 140 lutavam pelo direito à terra.
Pernambuco foi o 4º estado brasileiro com o maior número de casos de violações contra defensores de direitos humanos. Seis assassinatos foram somados, além de 100 casos de outros tipos de violências.
Uma das vítimas foi o menino Jonatas de Oliveira dos Santos, de 9 anos, filho do líder rural Geovane da Silva Santos. A criança foi morta a tiros na cidade de Barreiros, Mata Sul do Estado, em 10 de fevereiro de 2022.
As investigações apontaram que o alvo dos criminosos era o líder rural, que se negou a negociar com traficantes para repassar as terras do Engenho Roncadorzinho - onde também viviam cerca de 70 famílias. No dia do crime, o pai conseguiu fugir de casa antes de também ser morto.
Quatro homens - incluindo um detento do sistema prisional de Pernambuco - são réus pelos crimes de homicídio duplamente qualificado (motivo fútil e sem chance de defesa da vítima), tentativa de homicídio (por causa do pai da criança que seria o alvo), associação criminosa, associação para o tráfico e corrupção de menor. Não há data de julgamento.
"Este caso é ilustrativo das inúmeras camadas em torno da violência contra defensores de direitos humanos. O atentado foi direcionado ao pai, mas atingindo inclusive crianças que também são defensoras de seus territórios", descreveu o estudo.
O Estado com maior número de violações registradas contra defensores de direitos humanos foi o Pará, onde foram somados 143 casos, resultado dos intensos conflitos por terra - que inclui o desmatamento e mineração ilegal.
Já o Maranhão aparece com o maior número de assassinatos no País. Com 26 registros, a escalada tem relação com os óbitos de trabalhadores rurais em regiões do interior por causa da disputa por terra e avanço do agronegócio.
Em segundo lugar estão o Amazonas e o Pará, com 19 casos cada, e Rondônia, com 18.
A maior parte dos assassinatos foi provocada por arma de fogo (63,3%). Os indígenas correspondem a 29,6% dos defensores mortos, ou seja, quase um terço.
Na avaliação do coordenador-executivo da Terra de Direitos, Darci Frigo, os dados da pesquisa são reflexo de um período em que atacar defensoras e defensores de direitos humanos era política de governo.
"O governo de Jair Bolsonaro elegeu indígenas, quilombolas, povos e comunidades tradicionais e sem-terra como inimigos centrais da sua estratégia de governo. Tudo isso com ataques diretos aos seus direitos constitucionalmente assegurados. Ao mesmo tempo, realizou um desmonte das políticas públicas de demarcação de terras indígenas, foi conivente com o desmatamento e invasão das terras indígenas por grileiros e fazendeiros, apoiou o armamento e a mineração. E toda essa situação se manteve impune ao longo desses quatro anos", disse Frigo.
AMEAÇAS AOS DIREITOS HUMANOS
A ameaça é o tipo de violência com maior número de ocorrência nos dados coletados. O levantamento apontou 579 casos nos últimos quatro anos. O estudo não fez comparativos com governos anteriores. Porém, destacou que Bolsonaro muitas vezes descreditou movimentos sociais e organizações não governamentais (ONGs).
O ex-presidente, em várias ocasiões, acusou esses movimentos de "defender bandidos" ou de terem uma agenda contrária aos interesses nacionais. "Essa estigmatização contribuiu para um clima de hostilidade e desconfiança em relação aos defensores de direitos humanos, tornando trabalho dessas pessoas mais difícil e perigoso", indicou o estudo.
Em Pernambuco, a técnica de enfermagem e ativista LGBTQIA+ Fernanda Falcão foi ameaçada de morte por denunciar a exploração de mulheres em um espaço de prostituição no município de Abreu e Lima, no Grande Recife, em junho de 2021. Atualmente, ela está inclusa no Programa Estadual de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos de Pernambuco (PEPDDH/PE).
Mulher trans, Fernanda precisou deixar a casa dela, no Recife, após um grupo de homens invadir o local. Depois disso, ela conseguiu apoio da ONG Front Line Defenders, uma entidade irlandesa fundada em 2001 para ajudar e proteger defensores de direitos humanos. Eles custearam a estadia dela por três meses fora de Pernambuco. No retorno ao Estado, após receber declaração de estar inclusa no programa de proteção, ela chegou a sofrer uma tentativa de sequestro.
Atualmente, o PEPDDH/PE protege 41 defensores ameaçados de morte. Há casos acompanhados nas cidades do Recife, Jaboatão dos Guararapes, Olinda, Cabo de Santo Agostinho, Ipojuca, Escada, Moreno, Sirinhaém, São José da Coroa Grande, Jaqueira, Maraial, São Vicente Ferrer, Pesqueira, São Caetano, Garanhuns, Buíque, Itacuruba, Jatobá, Petrolândia, Cabrobó, Santa Maria da Boa Vista, Iguaraci, Carnaubeira da Penha e Barreiros.
COBRANÇA POR MAIS RECURSOS PARA PROTEÇÃO DOS DEFENSORES
Segundo a Secretaria Executiva de Direitos Humanos de Pernambuco, o orçamento previsto para o PEPDDH/PE em 2023 é de R$ 832.015 (recurso federal) e mais R$ 306 mil de verba estadual. Os valores são os mesmos dos anos de 2021 e 2022.
A coordenadora do Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (Gajop), Edna Jatobá, reforçou que os programas de proteção aos defensores de direitos humanos precisam de mais atenção tanto do governo federal quando do estadual.
"Mesmo depois do governo Bolsonaro, o programa ainda enfrenta incertezas. Precisa de aumento de recursos. Estamos em um momento de terra arrasada que o programa não está conseguindo dar conta de tantos defensores que tem batido à porta. Supera a meta de atendimento. É preciso cobrar também a responsabilidade do governo estadual, porque a contrapartida do governo estadual é irrisória diante do desafio que se tem", pontuou.
A socióloga e coordenadora de projetos da Justiça Global, Sandra Carvalho, seguiu a mesma linha e cobrou ações do atual governo.
"É urgente que o governo do presidente Lula assuma os compromissos acordados durante o governo de transição priorizando o PPDDH (Plano Nacional de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas), e se comprometa a não medir esforços para fortalecer o programa com orçamento adequado, paridade entre estado e sociedade civil em seu Conselho Deliberativo e uma nova propositura legislativa que institua o marco legal da política pública de proteção."