Os números chamam muito a atenção e são um exemplo do descaso e da impunidade em Pernambuco. Estatísticas da Polícia Civil revelam que 96.150 boletins de ocorrência foram registrados pela internet no ano de 2022. Mas só 363 (0,37%) resultaram em inquéritos policiais.
Os dados, extraídos da Unidade de Estatística Criminal, foram obtidos pelo Jornal do Commercio por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI).
Pelo menos 40 crimes podem ser registrados pela Delegacia pela Internet, como por exemplo ameaça, falsidade ideológica, vários tipos de furtos, violência doméstica familiar e até crueldade contra animais. (Veja lista completa mais abaixo)
Até o começo de maio deste ano, queixas de roubos também podiam ser feitas virtualmente, mas a Secretaria de Defesa Social (SDS) decidiu retirar a opção - sem aviso prévio à população - sob a justificativa de que as pessoas não sabiam preencher os campos, e poucas informações eram fornecidas à polícia.
A mudança, revelada pelo JC, resultou em críticas da sociedade e um pedido de explicações enviado pelo Ministério Público de Pernambuco ao governo estadual.
Policiais civis, ouvidos sob reserva, explicaram que cada delegacia (dividida por área ou município) precisa acessar os boletins de ocorrência virtuais para dar início às investigações. Mas, na prática, segundo eles, isso quase nunca acontece. Por isso o número tão baixo de inquéritos instaurados para apurar as queixas virtuais.
“As delegacias têm acesso, mas ninguém (nenhum policial) abre. As delegacias não vão atrás dos boletins de ocorrência on-line registrados em suas circunscrições para investigar por causa da alta demanda de trabalho”, relatou um dos policiais civis.
“A maioria da população acha que, quando registra a queixa pela internet, a delegacia já começa a investigação. De fato era para acontecer isso. As delegacias têm acesso, mas não fazem isso, porque a demanda é grande. Além disso, tem policial que não sabe nem entrar no sistema. O boletim de ocorrência fica perdido”, disse outro policial civil.
“Tem queixa de perturbação do sossego que a vítima cansa, pede ‘pelo amor de Deus’ para tomarem uma iniciativa, mas a polícia não investiga”,exemplificou.
A estudante recifense Isabelle Pires, de 18 anos, contou que foi roubada três vezes no ano passado. Nos dois primeiros casos, não quis registrar o boletim de ocorrência. Só na última decidiu fazer a queixa pela internet.
“Eu estava no ônibus, que estava parado no trânsito na Avenida Guararapes (Centro do Recife). O assaltante aproveitou que eu estava mexendo no celular, e, pela janela da frente, pulou e conseguiu levar meu aparelho”, disse Isabelle. O caso aconteceu em julho de 2022.
“Fiz o boletim de ocorrência na tentativa de conseguir resgatar o celular. Recebi depois o comprovante da queixa, mas a polícia nunca entrou em contato comigo para falar da investigação.”
POUCOS INQUÉRITOS REMETIDOS À JUSTIÇA
No documento com os dados disponibilizados por meio da LAI, a Polícia Civil sinalizou que parte das queixas resulta apenas em Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO), e não em inquérito policial. Crimes contra a honra, por exemplo. Mas a Unidade de Estatística Criminal não especificou a quantidade de TCOs gerados.
Na realidade, os crimes de roubo (que antes podiam ser registrados on-line) e de furto representam a maioria dos boletins de ocorrência. E deveriam, imediatamente, ser transformados em inquéritos para identificar e punir os criminosos.
Mas a impunidade impera, como apontam os números. Dos 363 inquéritos instaurados a partir de boletins de ocorrência virtuais registrados no ano passado, até hoje apenas 183 investigações foram concluídas e remetidas à Justiça.
Apesar de se tratarem de boletins de ocorrência de 2022, as estatísticas foram atualizadas no começo desta semana. Ou seja, após seis meses do início da nova gestão da Polícia Civil de Pernambuco, as queixas continuam paradas e não evoluíram para inquéritos.
Importante destacar que, em janeiro deste ano, houve uma promessa de reforço nas escalas da Polícia Civil com mutirões para acelerar as investigações de crimes - o que, na prática, não resultou em mais atenção aos boletins virtuais.
“A falta de investigação incentiva a prática de novos crimes e reforça a impunidade e torna a sociedade refém do medo e da insegurança”, pontuou a socióloga e coordenadora do Gabinete Assessoria Jurídica Organizações Populares (Gajop), Edna Jatobá.
A especialista destacou que, na semana passada, durante reunião do Conselho Estadual de Segurança Pública e Defesa Social, com representantes da SDS, questionamentos foram feitos em relação à retirada da possibilidade de os crimes de roubo serem registrados pela internet. A preocupação é de que as vítimas encontrem mais dificuldades e deixem de fazer as queixas de forma presencial nas delegacias.
“Nós da sociedade civil questionamos o motivo da mudança e se a SDS está criando condições para que as vítimas sejam atendidas sem fila e com efetividade. A SDS alega que a mudança é para que as vítimas prestem mais informações para garantir mais provas e inquéritos mais robustos. Agora, é preciso observar a evolução dos números dos inquéritos para entender melhor o impacto dessa medida. Porque, se o número de inquéritos não aumentar, a gente vai entender que essa medida não foi efetiva. O tempo dirá”, disse Edna Jatobá.
Especialista em direito penal e professor universitário, Glebson Bezerra pontuou que a população precisa registrar os boletins de ocorrência quando são vítimas de crimes, mas reforçou que os mesmos devem ter informações relevantes para ajudar nas investigações.
“O boletim é uma notícia-crime. Só que para ter investigação, a autoridade policial vai precisar de elementos. O efetivo policial é muito pequeno. Mas muitas vezes faltam respostas porque, infelizmente, a maioria dos boletins de ocorrência se resume ao registro, sem os requisitos necessários para a abertura das investigações”, destacou o professor que atua no Centro Universitário UniFBV Wyden e na Estácio do Recife.
O QUE DIZ A POLÍCIA CIVIL DE PERNAMBUCO?
A coluna Segurança solicitou à assessoria da SDS um porta-voz para falar sobre a falta de investigações dos boletins de ocorrência virtuais. Mas a pasta se pronunciou apenas por nota oficial.
“A Polícia Civil de Pernambuco informa que vai destinar um delegado especificamente para restabelecer o fluxo dos registros de ocorrências realizados pela população na Delegacia pela Internet, proporcionando mais celeridade e assertividade nas informações”, afirmou o texto.