ERRO NO JUDICIÁRIO

Homem passa 40 dias preso no Cotel por crime que não cometeu: 'Dias muito difíceis'

Provas indicam que houve um erro no mandado de prisão, que deveria ter ser cumprido contra outra pessoa

Raphael Guerra
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Raphael Guerra
Publicado em 12/07/2023 às 14:27 | Atualizado em 12/07/2023 às 20:08
CORTESIA
"Foram dias muito difíceis, fiquei sem auxílio nenhum. Sofria pressão psicológica, ouvia palavrões", relatou Edivaldo - FOTO: CORTESIA

"Minha indignação é que a Justiça tem que agir para defender os cidadãos. Mas comigo foi ao contrário. Espero que outros pais de família não passem pelas dificuldades e constrangimento que passei."

As palavras acima são de Edivaldo dos Santos Junior, de 35 anos, que ficou preso durante 40 dias no Centro de Observação Criminológica e Triagem (Cotel), em Abreu e Lima, no Grande Recife, por um crime que não cometeu. Provas indicaram um possível erro no sistema do Banco Nacional de Mandado de Prisão, que é mantido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e alimentado pelos tribunais estaduais e federais. 

Na tarde do dia 27 de maio deste ano, Edivaldo estava realizando serviços de manutenção na igreja evangélica que frequentava perto da casa dele, no bairro de Queimadas, distrito de Bonança, em Moreno. A mãe dele, às pressas, informou que a polícia havia indo até a residência deles para procurá-lo.

"Fui com um amigo da igreja até o posto policial e me apresentei. Achei que tinha a ver com um documento que perdi e registrei um boletim de ocorrência para tirar a segunda via. Quando me identifiquei, o policial militar perguntou se eu tinha alguma 'dívida' com a Justiça. Eu disse que não. Ele contou que tinha um mandado de prisão e que precisava me levar para a delegacia", afirmou Edivaldo, em entrevista exclusiva à coluna Segurança.

Na Delegacia de Prazeres, em Jaboatão dos Guararapes, Edivaldo soube que havia um mandado de prisão preventiva em aberto, com o nome dele, por uma acusação de homicídio no bairro de Realengo, no Rio de Janeiro, lugar que ele disse nunca ter ido. 

O rapaz dormiu em uma cela da delegacia e, no dia seguinte, foi levado por policiais civis para fazer exames de corpo de delito no Instituto de Medicina Legal (IML), no Recife. Foi informado ainda que passaria por uma audiência de custódia, mas isso não ocorreu. Ele foi encaminhado direto ao Cotel, onde viveu dias de terror.

SEMANAS DE TERROR NO COTEL

Edivaldo contou que ao chegar no Cotel tentou explicar que não havia cometido crime algum, mas que ninguém acreditou nele. "Fui mal recepcionado, não queriam nem me ouvir. Disseram logo que todo mundo que chega lá diz que é inocente. Mas eu sou mesmo."

O desempregado ficou em uma cela com cerca de 12 pessoas. Segundo ele, não havia cama, nem colchão. "A gente dormia no chão mesmo, sem nada. Só se algum familiar nosso levasse algo. A água era da torneira e também era limitada. O 'chaveiro' (detento) que toma conta do pavilhão e dizia os horários", disse.

"Foram dias muito difíceis, fiquei sem auxílio nenhum. Sofria pressão psicológica, ouvia palavrões. Diziam que eu matei, que eu estava me fazendo de bonzinho", relembrou.

Evangélico, ele contou que passava boa parte do dia orando para que a justiça fosse feita e ele voltasse a ficar em liberdade. "Todo dia eu olhava para o céu e dizia que Jesus ia mostrar a verdade."

SUSPEITA DE ERRO OU FRAUDE, APONTA DESEMBARGADOR

Enquanto Edivaldo aguardava por respostas, familiares se uniram e contrataram um advogado para ingressar na Justiça com o pedido de habeas corpus.

"O nome dele não deveria constar naquele mandado de prisão. Ele nunca respondeu a um processo, nunca foi investigado. O nome da mãe e o CPF também não eram iguais. Na verdade, o mandado era para outra pessoa, que até já está presa por outros crimes, como ficou provado", explicou o advogado Jeferson Rodrigues de Souza. 

O pedido de liberdade foi analisado pelo desembargador Demócrito Reinaldo Filho, do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE). Na decisão favorável a Edivaldo, o magistrado destacou várias falhas identificadas.

"Chama atenção, de início, o fato de não haver, no processo originário, informes acerca dos fatos, do modus operandi, não há inquérito policial, fato típico e nem sequer há vítima. Há, tão somente, a indicação de que o processo trata de suposto crime de homicídio, não existindo menção a processo que apure o cometimento deste delito", pontuou.

"O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) disponibiliza, na parte superior direita do documento de mandado, um Qr Code. Ao fazer a leitura do código constante no referido mandado, este direciona a um mandado de prisão emitido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ), que diz respeito à pessoa de Gabriel William Nascimento da Silva", citou o desembargador.

"O número do processo que deu origem ao mencionado mandado de prisão não existe no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco e, coincidentemente, este número é similar ao do processo penal que originou o mandado de prisão da pessoa de Gabriel William, diferindo, apenas, no número de identificação do Estado", destacou. 

"Ainda sobre o mandado de prisão (...), salta aos olhos o fato de este não ter sido assinado e não fazer menção a nenhuma autoridade judicial. (...) não há menção ao nome do Magistrado, nem mesmo à Vara ou Comarca em que este atua."

A decisão citou que foi realizada uma busca no sistema do Banco Nacional de Mandado de Prisão e que não foi encontrado nenhum mandado em desfavor de Edivaldo. Nem mesmo no sistema eletrônico do TJPE. 

"Ao que me parece, não há fato típico delineado, nem processo tramitando para apuração de suposto crime, nem ações penais ou mandados de prisão em nome do paciente, nem mesmo houve audiência de custódia para homologação da prisão", esclareceu o desembargador, que decidiu conceder a soltura de Edivaldo. 

"Diante da fundada suspeita de erro ou fraude na prisão preventiva do paciente Edivaldo Teodósio dos Santos Junior, entendo, como medida de justiça, por relaxar a segregação cautelar a que se encontra submetido, de modo que determino que o paciente seja posto em liberdade", finalizou.

RECOMEÇO E AÇÃO POR INDENIZAÇÃO CONTRA O ESTADO

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Edivaldo dos Santos Júnior ficou mais de 40 dias no Cotel, em Abreu e Lima, após ser preso por um crime que não cometeu - CORTESIA

Na última sexta-feira (7), Edivaldo recebeu a notícia tão aguardada. Estava livre para voltar para casa e recomeçar a vida ao lado da esposa e dos três filhos. "É muito difícil, tanto psicologicamente como financeiramente. As pessoas ficam com aquele olhar... Ficam dizendo aos meus filhos que sou ladrão, que sou assassino", relatou.

Desempregado, Edivaldo contou que está tentando atualizar os documentos para buscar um novo trabalho. "Dias antes de ser preso, eu ia fazer uma seleção de vaga em uma empresa. Estava sustentando a casa apenas fazendo 'bicos'. Mas preciso arrumar um emprego fixo", disse.

O advogado Jeferson Rodrigues de Souza afirmou que será movida uma ação com pedido de indenização por danos morais e materiais. 

"O que aconteceu com o senhor Edivaldo é um fato inédito, mas que deixa qualquer cidadão vulnerável por um possível erro que aconteceu com o mandado de prisão, que era para ser cumprido contra outra pessoa, conforme o sistema indicou posteriormente", afirmou.

"Os tribunais são responsáveis por alimentar o Banco Nacional de Mandado de Prisão, onde aconteceu o erro. Por isso, haverá uma ação indenizatória contra o Tribunal de Justiça de Pernambuco. Erros como esse penalizam o cidadão, causando sofrimentos irreparáveis", completou.

O QUE DIZEM O CNJ E O TJPE?

A coluna procurou o TJPE e o CNJ para questionar se o erro cometido no mandado de prisão está sendo apurado e quais medidas estão sendo adotadas em relação ao caso.

Por meio de nota, a assessoria do CNJ afirmou que "cabe ao juiz/tribunal responsável pela emissão do mandado prestar as informações acerca dos documentos inseridos no Banco Nacional de Mandados de Prisão".

Já a assessoria de comunicação do TJPE declarou, também em nota, que "todas as providências em relação a análise do HC (habeas corpus) foram tomadas no prazo de 24 horas, assim que chegou ao gabinete do desembargador".

"No momento, os autos foram remetidos com vista para a Procuradoria Geral de Justiça para emitir parecer e adotar, caso julgue necessário, mais providências. Após essa análise, o feito será julgado pela 4ª Câmara Criminal da Capital", disse a nota.

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