Com aumento de roubo de veículos, medo e trauma mudam hábitos de motoristas no Grande Recife
Histórias de condutores abordados por criminosos reforçam como a violência também afeta a mobilidade urbana
O motorista de aplicativo Jorge Luiz, de 31 anos, estava prestes a encerrar mais uma corrida, em uma madrugada exaustiva de trabalho, quando teve um grande susto. Enquanto pilotava a moto com uma passageira pelo bairro de Areias, na Zona Oeste do Recife, outro veículo se aproximou com dois criminosos armados, que obrigaram Jorge a parar.
"Eles agiram com bastante violência. Vi que mais duas motos com outros homens, possivelmente dando cobertura, também estavam perto deles. A passageira ficou bastante nervosa do meu lado. Eles levaram a moto que eu estava, o meu celular e a bolsa da passageira. Foi um terror total. Quando eles foram embora, pedi ajuda e entramos em contato com a Polícia Militar, mas ninguém apareceu", contou.
"Fui em duas delegacias, mas estavam fechadas. Somente na Delegacia de Boa Viagem (Zona Sul do Recife) foi que consegui registrar a queixa para tentar encontrar a moto, que é alugada. Me senti muito desacolhido pela segurança pública do Estado, porque sequer mandaram uma viatura policial no local onde fui vítima da violência. Me senti um lixo, jogado", completou.
A abordagem criminosa ao motorista aconteceu na madrugada de 6 de dezembro de 2023. Depois desse dia, por causa do trauma da violência, Jorge Luiz decidiu mudar alguns hábitos para tentar driblar a violência pelas ruas e avenidas da Região Metropolitana do Recife (RMR).
"Fiquei traumatizado com a situação, não consigo mais trabalhar após as 21h. Fico sempre ligado no retrovisor acompanhando se alguém está se aproximando. É muito complicado", disse.
NÚMEROS TRADUZEM MEDO SENTIDO POR MOTORISTAS DA RMR
A história de Jorge Luiz é só um exemplo de tantos casos da violência que afeta a mobilidade urbana. De acordo com estatísticas da Secretaria de Defesa Social (SDS), 6.412 roubos de veículos na RMR foram somados pela polícia entre janeiro e novembro de 2023. Pouco mais da metade dos registros (3.301) foi apenas na capital.
Houve aumento de 33,25% no número de abordagem criminosas contra motoristas, se comparado com o mesmo período de 2022 (quando foram registrados 4.812 assaltos violentos).
A polícia reconhece, inclusive, que as motos representam parte expressiva dos veículos roubados. Um dos motivos é a facilidade em alterar os sinais identificadores.
Além disso, como aponta o Departamento Estadual de Trânsito de Pernambuco (Detran-PE), a quantidade de motos nas ruas e avenidas cresceu consideravelmente nos últimos anos.
Em 2020, a frota de motocicletas registradas era de 362.514, só na Região Metropolitana do Recife. Em novembro de 2023, o número chegou a 415.503.
"De fato, o que está impactando no aumento das estatísticas de roubo de veículos é a motocicleta. Houve um incentivo por parte do governo no comércio desse veículo, graças à queda no valor dos tributos. Com isso, o preço baixou e houve um incremento na frota", disse o delegado Paulo Berenguer, gestor do Departamento de Repressão aos Crimes Patrimoniais (Depatri).
BOA VIAGEM É O BAIRRO MAIS PERIGOSO PARA MOTORISTAS
Na tarde de 9 de agosto de 2023, um médico de 75 anos, cujo nome foi preservado, foi mais uma vítima da violência. Ele foi abordado segundos depois de estacionar o carro de luxo, na frente de casa, no bairro de Boa Viagem, Zona Sul do Recife.
Apesar de o local estar bastante movimentado e contar com câmeras de segurança, criminosos armados não se intimidaram e realizaram a abordagem. Em instantes, fugiram com o veículo.
O carro do médico foi recuperado pela polícia, dois dias depois, no bairro de Cajueiro.
Segundo a Polícia Civil, Boa Viagem é o bairro onde ocorrem mais roubos de veículos. "Boa Viagem é um bairro grande e o poder aquisitivo é maior. Muitas das vezes o veículo não é o objetivo do criminoso. Ele faz a abordagem para roubar o passageiro e depois abandona o carro em outro lugar. O objetivo é roubar um relógio de luxo, um notebook, um tablet, algo de valor que esteja no veículo", disse o delegado Diego Acioli, titular da Delegacia de Repressão aos Roubos e Furtos de Veículos.
"Soma-se a isso o fato de Boa Viagem ter várias rotas de fuga. Durante uma perseguição policial, por exemplo, o criminoso pode fugir em direção a Setúbal, em direção ao bairro da Imbiribeira, pode voltar ao Centro do Recife. Então, há muitas possibilidades de saída. Por isso Boa Viagem é primeiro lugar, no Estado todo, em números absolutos de roubos de veículos", completou.
Na manhã de 5 de dezembro de 2023, um comerciante de 41 anos foi surpreendido por três criminosos armados no bairro do Pina, vizinho de Boa Viagem. A vítima estava com o carro parado, aguardando a mãe descer de um edifício, quando o assalto foi anunciado.
"Eles botaram a arma na minha cabeça, me jogaram no banco de trás. Fui com dois homens atrás e um dirigindo na frente. Pensei até que ia morrer. Não sabia o que estava acontecendo", relatou a vítima.
Os ladrões seguiram em fuga pelo bairro de Boa Viagem. A polícia foi acionada por populares e houve perseguição pela Avenida Engenheiro Domingos Ferreira. O suspeito que dirigia acabou perdendo o controle do veículo, que bateu em outros carros estacionados.
Dois suspeitos de 26 e 27 anos foram presos na hora, enquanto um terceiro de 36 tentou fugir com uma arma na mão. O suspeito fez menção de atirar, mas os policiais foram mais rápidos e ele acabou ferido à bala.
"Pensei que eles iam levar o carro, mas levantaram os vidros e me levaram. Pediam o tempo todo para eu fazer Pix. E diziam 'se a polícia pegar a gente, você vai morrer, a gente vai te matar'. Falaram isso várias vezes", disse o comerciante, após ser salvo pela polícia.
O médico vítima de assalto em agosto e o comerciante que viveu quase uma hora de terror sob a mira de uma arma de fogo também mudaram a rotina no trânsito após os traumas sofridos. Estão ainda mais em alerta nas ruas, mesmo aquelas de maior movimento e iluminadas.
"CRIME DE OPORTUNIDADE"
De acordo com o delegado Diego Acioli, os criminosos especializados em roubos de veículos não definem um perfil específico de motorista que será abordado.
"A gente observa que o roubo é um crime aleatório. Não tem foco mais para mulher ou para homem. É uma questão de oportunidade. Sempre explico isso às vítimas: não é nada direcionado a um perfil específico. O criminoso vê naquele momento uma oportunidade e faz a abordagem", pontuou.
"Muitas vezes o motorista fica parado na rua, com o carro ligado e mexendo no telefone celular. A pessoa mal intencionada vai e aborda. É por oportunidade. Outra coisa que a gente observa que influencia é a falta de iluminação", completou.
Em 19 de outubro deste ano, o juiz Paulo Torres Pereira da Silva, de 69 anos, foi vítima de latrocínio (roubo seguido de morte), no bairro de Candeias, em Jaboatão dos Guararapes, na RMR.
De acordo com a investigação, os acusados queriam roubar um carro e escolheram o do juiz de forma aleatória, porque o veículo estava com as janelas abertas e eles perceberam que o motorista era um idoso. O magistrado foi atingido por um tiro na cabeça após tentar dar marcha a ré para fugir, segundo depoimento de um dos criminosos.
COMO AGEM OS LADRÕES DE VEÍCULOS?
Os grupos voltados para roubos e furtos de veículos estão cada vez mais especializados. E isso está muito claro para a polícia, que se esforça para investir em tecnologia e treinamento dos investigadores.
"A gente sabe que, historicamente, veículos que são alvos de roubos são levados para a região da Mata Norte de Pernambuco, onde há muitos receptadores em cidades como Carpina e Limoeiro. Mas a cadeia criminosa é muito extensa. Nós sabemos que hoje em dia há pessoas especializadas em adulteração de vidros, em adulteração de motor, de chassi. E a polícia precisa focar em toda essa cadeia", explicou Diego Acioli.
"Sabemos ainda que, muitas vezes, pessoas presas fazem a intermediação entre quem roubou o veículo e quem será o receptador dele. Por isso também precisamos de iniciativas para combater esses crimes no sistema prisional."
A polícia revelou que as quadrilhas agem de maneiras diferentes após roubar um carro de luxo ou de valor mais popular.
"Quando se trata de carros de luxo, para uma quadrilha é mais vantajoso adulterar o veículo e colocar em circulação novamente. Para eles, rende mais dinheiro do que desmanchar, porque o carro de valor tem pouca comercialização de peças. Diferentemente do carro popular, que a gente observa que é mais comum o desmanche para vender as peças - pois há mais procura", afirmou o delegado.
Ao longo do ano, quatro operações de repressão qualificada (uma delas com desdobramento) foram deflagradas para desarticular grupos especializados em roubos e furtos de veículos - com foco principal no Grande Recife e Mata Norte.
Quase 200 medidas cautelares foram deferidas pela Justiça em 2023, incluindo mandados de prisão preventiva e mandados de busca e apreensão. Em uma única operação, a Polícia Civil prendeu 37 pessoas.
CRESCE PROCURA POR RASTREADORES DE VEÍCULOS
Assustados com tantos casos de roubos, motoristas estão procurando equipamentos de segurança - como rastreadores veiculares - além dos seguros. André Lima, diretor comercial da empresa AR-4 Proteção Veicular, disse que a procura cresceu consideravelmente ao longo de 2023.
"A empresa existe há três anos, mas esse ano realmente houve maior procura pelos rastreadores, principalmente para motos. Mais homens procuram o serviço, porque trabalham em carros de aplicativo e plataformas de entrega", contou.
André relatou que, em geral, os veículos recuperados após rastreamento são encontrados sem parte das peças e em locais de difícil acesso.
"Os criminosos roubam para tirar e vender as peças. Eles agem rapidamente e depois abandonam. A maioria dos carros é encontrada na capital, mas há no interior também. O a gente tem observado é que, cada vez mais, os criminosos estão abandonando os carros em locais de difícil acesso, como matas", disse.
O valor para aquisição desses equipamentos varia de acordo com o modelo do veículo. O custo mínimo é de R$ 35 mensais, no caso das motos, ou R$ 75 para carros.
FURTOS DE VEÍCULOS TAMBÉM DESAFIAM A POLÍCIA
Os casos de furtos de veículos (quando não há abordagem violenta aos motoristas) também são uma preocupação em Pernambuco, sobretudo na capital. O aumento de queixas entre janeiro e novembro foi de 14,81% em relação ao mesmo período do ano passado.
Na tarde do último dia 13 de dezembro, o empresário Fábio Monteiro teve duas motos furtadas perto de um supermercado localizado no bairro da Madalena, na Zona Oeste do Recife.
"Elas foram deixadas estacionadas e, à noite, percebemos que não estavam mais lá. As imagens de câmeras mostraram que os assaltantes gastaram 30 segundos para furtar uma, e mais 30 para levar a outra. Tudo muito rápido", relatou Monteiro.
As duas motos tinham rastreador. A empresa responsável foi acionada e identificou que uma estava no bairro de Santo Amaro e outra na Rua da Aurora, ambas na área central do Recife. Mas ao chegarem nos locais, nada foi encontrado. "Só achamos um filtro de ar", lamentou.
O prejuízo foi de R$ 21 mil em cada um dos veículos.
AÇÕES PARA COMBATER OS ROUBOS DE VEÍCULOS
Em Pernambuco, uma força-tarefa formada por representantes de todas as forças de segurança pública, além de convidados, discute mensalmente as estatísticas e aponta possíveis ações para redução dos roubos e furtos de veículos.
Em novembro, a governadora Raquel Lyra anunciou que Pernambuco tem a meta de reduzir em 30% essa modalidade criminosa até o final de 2026, tendo como base as estatísticas de 2022.
O delegado Paulo Berenguer, gestor do Depatri, citou um exemplo exitoso que foi adotado nos estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Norte.
"Houve um foco na fiscalização das casas de desmonte, que vendem peças de carros. A atribuição é do órgão de trânsito estadual. Em São Paulo, por exemplo, teve uma redução de 60% nos roubos e furtos de veículos. Minas Gerais está reduzindo e Rio Grande do Norte também", afirmou.
Segundo Berenguer, o Detran-PE se comprometeu a instituir um sistema de fiscalização mais efetivo a partir de 2024. "É uma coisa complexa, porque envolve código de barras, número de peças. Entrada e saída de mercadorias de peças."
O delegado disse ainda que as novas câmeras de segurança que serão adquiridas no Estado devem contar com leitores de placas veiculares. "É uma tecnologia desenvolvida para identificar se aquele veículo está roubado, furtado, com alguma irregularidade. Além disso, queremos uma integração de câmeras com os municípios para facilitar a identificação dos criminosos."
Ao todo, o governo de Pernambuco promete comprar 2 mil câmeras de videomonitoramento em 2024.