INVESTIGAÇÃO

Da 'legítima defesa' ao homicídio: em um ano, MPPE avançou no combate à violência policial

Com crescimento dos óbitos decorrentes de intervenções policiais no Estado, grupo de promotores deu maior foco ao acompanhamento e esclarecimento dos casos

Imagem do autor
Cadastrado por

Raphael Guerra

Publicado em 14/03/2024 às 12:25 | Atualizado em 14/03/2024 às 12:54
Notícia
X

Em meio ao crescimento das mortes decorrentes de intervenções policiais em Pernambuco no ano de 2023, um grupo formado por promotores do Ministério Público de Pernambuco (MPPE) conseguiu avançar em investigações e desmistificar uma tese ainda tão comum na conclusão dos inquéritos: a de legítima defesa.

Casos foram reavaliados, diligências foram cobradas, depoimentos infundados foram derrubados e resultados apontaram para outros caminhos. Em um ano, vários policiais militares, de diferentes batalhões, foram denunciados à Justiça por homicídio qualificado, porque, em geral, mataram por motivo fútil e sem dar chance de defesa às vítimas. 

A sugestão de ser dada mais atenção às investigações, logo após a ocorrência e antes de ser fixado o promotor natural, partiu da promotora Helena Martins, então coordenadora do Centro de Apoio Operacional de Defesa Social e Controle Externo da Atividade Policial do MPPE. Para ela, isso permitiria um acompanhamento do trabalho da Polícia Civil desde o primeiro momento da coleta dos indícios para fortalecer o inquérito. 

"Vi que era preciso dar voz a quem não tinha e escolher frentes. Escolhi ajudar a vencer silêncios históricos e ir contra as estatísticas que mostram que a população negra, jovem e moradora de periferias vem sendo exterminada há muitos anos", disse.

O trabalho do MPPE ganhou mais evidência, na última semana, após a Justiça aceitar denúncia contra 12 policiais militares, incluindo três oficiais, por triplo homicídio duplamente qualificado relacionado ao caso que ficou conhecido como a chacina de Camaragibe, ocorrida em setembro de 2023. 

Provas colhidas pelo Grupo de Operações Especiais (GOE), da Polícia Civil, e pelo MPPE indicaram a participação direta dos PMs na execução de três irmãos de um homem suspeito de matar dois militares durante uma ocorrência no bairro de Tabatinga. Outras investigações seguem em andamento para esclarecer as execuções de outros familiares do suspeito, que também foi morto. 

ACOMPANHAMENTO DAS INVESTIGAÇÕES

AMCS MPPE
Promotores traçaram estratégias para melhorar investigações relacionadas aos óbitos em ações policiais - AMCS MPPE

Há um ano, sob a liderança de Helena Martins, seis promotores de Justiça passaram a fazer parte do Grupo de Atuação Conjunta Especializada (Gace) e Controle Externo, voltado, prioritariamente, ao acompanhamento e análise das investigações das mortes ocorridas em ações de profissionais da segurança. 

"A nossa decisão foi focar no acompanhamento de casos concretos e no estudo desses casos para estabelecer protocolos e apontar um modelo permanente para o controle da atividade policial", explicou Helena Martins. 

Logo no início, chamou a atenção algumas imprecisões apresentadas pelos inquéritos policiais, principalmente pelo temor que testemunhas e familiares de vítimas tinham e têm de retaliações.

O acompanhamento do MPPE nessa etapa da investigação permitiu, em alguns casos, que testemunhas passassem a contribuir com as suas versões sobre os casos.

"Muitos promotores de Justiça têm dificuldade na análise dos inquéritos que já vêm com a conclusão de legítima defesa e veem poucas possibilidades do que fazer após aquele resultado. Algumas investigações demoram meses para serem remetidas e isso dificulta ainda mais", disse.

"Com a criação do Gace, passamos a fazer o acompanhamento dos casos desde o momento em que tomamos conhecimento deles. A Secretaria de Defesa Social (SDS) tem a obrigação de comunicar, em 24 horas, as ocorrências de letalidade policial ao MPPE. O promotor natural passa a acompanhar e pode, evidentemente, pedir o apoio da Gace", completou.

De acordo com a SDS, 120 mortes por intervenções policiais foram somadas em 2023. No mesmo período do ano anterior, foram 92. O aumento foi de 30,4%. É importante reforçar que parte dos óbitos foi, sim, ocasionado por legítima defesa. 

MPPE ESCLARECEU MORTE DE INDÍGENA NO INTERIOR

REPRODUÇÃO
Edvaldo Manoel de Souza, de 61 anos, morreu em Carnaubeira da Penha, em 15 de junho de 2022 - REPRODUÇÃO

A morte do indígena Edvaldo Manoel de Souza, de 61 anos, em Carnaubeira da Penha, no Sertão de Pernambuco, foi um dos casos investigados pelo MPPE. 

O óbito ocorreu em 15 de junho de 2022. Na ocasião, o indígena da etnia Atikum foi abordado por policiais militares que procuravam uma espingarda de cartucho na Aldeia Olho D'Água do Padre. Na época dos fatos, os PMs relataram que a vítima havia passado mal e morrido. 

Inicialmente, a Polícia Civil opinou pelo arquivamento do caso. Mas o MPPE não concordou. 

Segundo denúncia enviada à Justiça, os cabos Marcos Murilo Guerra de Araújo e Daniel Rodrigues Araújo foram à casa do indígena "sem que houvesse mandado judicial ou qualquer elemento indicativo de ocorrência de prática de crime no local".

A investigação apontou que Marcos Murilo deu um tapa no tórax da vítima. Em seguida, os cabos levaram ele para uma construção de taipa (no mesmo terreno), onde tudo foi revirado em busca de objetos ilícitos. Nada foi encontrado.

Na sequência, os policiais levaram Edvaldo para trás de uma capela. Lá, o indígena foi asfixiado até morrer.

Mesmo já sem vida, a vítima foi levada pela PM até a Unidade Mista de Saúde Argemiro José Torres. Um dos filhos da vítima notou que ela apresentava um ferimento na cabeça. Laudos periciais comprovaram sinais de trauma na cabeça e indicativos de asfixia.

Os cabos foram denunciados por homicídio duplamente qualificado (meio cruel e mediante recurso que impossibilitou a defesa da vítima). Não há prazo para julgamento.

MORTES NA COMUNIDADE DO DETRAN, NO RECIFE

REPRODUÇÃO
Policiais do Bope que mataram dois homens na comunidade do Detran, em novembro de 2023, continuam sendo investigados - REPRODUÇÃO

Na noite de 20 de novembro de 2023, uma operação realizada por policiais do Batalhão de Operações Especiais (Bope) na comunidade do Detran, na Iputinga, Zona Oeste do Recife, resultou nas mortes de dois homens. 

Uma câmera de segurança filmou o momento em que eles invadiram residência e atiraram várias vezes. Depois, dois corpos enrolados em lençóis são retirados e levados nas viaturas.

As vítimas foram identificadas como Bruno Henrique Vicente da Silva, de 28 anos, e Rhaldney Fernandes da Silva Caluete, 32. Ambos já chegaram mortos à Unidade de Pronto Atendimento (UPA) da Caxangá.

Logo após os óbitos, os militares do Bope se apresentaram na sede do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), no bairro do Cordeiro, e relataram que os homens foram mortos porque reagiram à abordagem.

Eles chegaram a ser liberados após os depoimentos. Mas, após análise das imagens de uma câmera de segurança, a Delegacia de Polícia Judiciária Militar identificou que a versão dos PMs não se sustentava e determinou que eles fossem autuados pelo crime militar de violação de domicílio. Seis dos nove militares chegaram a ser presos preventivamente.

Recentemente, a Polícia Civil concluiu que o caso se tratou de legítima defesa e opinou pelo arquivamento. Mas o inquérito está sob análise do MPPE, que ainda não se posicionou se manterá essa tese ou se irá denunciar os PMs por homicídio qualificado. 

MANUAL PARA OUTROS PROMOTORES

Para auxiliar os promotores de Justiça do Estado, um manual está sendo criado pelo Gace com orientações de questionamentos que precisam ser feitos na análise dos inquéritos referentes às mortes em ações da polícia.

"Câmeras de segurança foram periciadas? Testemunhas foram ouvidas ou só os policiais? Há indicativo de fraude processual? Tudo isso precisa ser observado pelos promotores para garantir que a investigação seja isenta e fiel aos fatos", pontuou Helena Martins. 

Tags

Autor