OAB-PE critica edital de câmeras para detectar 'vadiagem' nas ruas de Pernambuco
Presidente da entidade reforçou que termo gera preocupação pelo risco da reprodução de "práticas discriminatórias". Equipamentos seguem em licitação
O polêmico edital do governo de Pernambuco para instalação de 2 mil câmeras nas principais ruas e avenidas continua sendo criticado por entidades, porque prevê o uso de softwares com "detecção de vadiagem". Desta vez, a Ordem dos Advogados do Brasil - seccional Pernambuco (OAB-PE) fez um posicionamento duro e reforçou que o uso da expressão, publicada em edital, gera preocupação pelo risco de serem perpetuadas "práticas discriminatórias".
"O uso de tecnologias de videomonitoramento para a segurança pública deve ser sempre pautado por princípios éticos e legais que assegurem os direitos fundamentais dos cidadãos e das cidadãs. O uso do termo 'vadiagem' suscita preocupações sérias sobre a potencial violação de direitos humanos e a perpetuação de práticas discriminatórias", afirmou o presidente da OAB-PE, Fernando Ribeiro Lins.
"É imprescindível que qualquer medida de segurança pública seja pensada de modo a não reforçar estigmas sociais, especialmente contra populações vulneráveis. É importante que sempre haja uma revisão criteriosa de textos como o do edital em questão, ouvindo uma série de atores, para que o seu conteúdo final seja sempre democrático, garantindo o respeito e a dignidade de todos os pernambucanos", completou.
No termo de referência, o governo de Pernambuco indica que pretende adquirir a licença de 598 unidades do analítico de imagem com detecção de "vadiagem". A tecnologia promete a análise e detecta de forma automatizada situações consideradas suspeitas ou evento apontados como fora do padrão de comportamento.
Em 2022, a Prefeitura de São Paulo publicou edital semelhante, inclusive com reconhecimento de pessoas pela cor da pele, mas voltou atrás após pressão popular. O governo de Pernambuco, por enquanto, manteve o edital sem retificação.
"RISCO ÀS EXPRESSÕES CULTURAIS"
O coordenador do Instituto do Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife (IP.rec), Pedro Amaral, pontuou que o uso do termo "vadiagem", como descrito no edital do governo de Pernambuco, põe em risco expressões culturais, artísticas e até religiosas.
"A 'vadiagem' foi usada para perseguir expressões culturais da população negra, como a capoeira, o samba e o próprio frevo. Pensando num paralelo atual, podemos pensar como isso traz riscos para o nosso Carnaval de rua e para expressões como o brega funk e o hip hop, mas também para as religiões de matriz africana, todas essas que já são perseguidas no Brasil atual", disse.
O pesquisador destacou ainda que o uso dessa tecnologia pode resultar na "criminalização da pobreza e da vulnerabilidade social".
"Respectivamente, me refiro aos riscos de penalização da população de rua e dependentes químicos. Num contexto de parcas políticas de cuidado com essas populações, Pernambuco corre o risco de imitar as políticas violentas que têm sido praticadas em São Paulo", alertou.
A vadiagem está prevista no artigo 59 da Lei de Contravenções Penais, desde 1941. É imputada à pessoa que se entrega "habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência" ou que mantém a "própria subsistência mediante ocupação ilícita".
A pena varia de 15 dias a três meses de prisão. Apesar disso, na prática, é considerada inaplicável por causa das garantias previstas na Constituição de 1988.
SDS DIZ QUE CÂMERA É APENAS "INDICATIVO" QUE VAI AUXILIAR POLÍCIA
Em nota, na semana passada, a assessoria da Secretaria de Defesa Social (SDS), argumentou que a prática de "vadiagem", descrita no edital, refere-se a um recurso chamado "loitering", termo em inglês que também pode ser traduzido como "perambulação".
"Alguns criminosos têm como 'modus operandi' estudar o local e ficar 'perambulando' pela rua onde, por exemplo, vão praticar um assalto — e essas atitudes consideradas suspeitas também são estudadas pelos policiais", disse a pasta estadual.
"O 'loitering' é usado ainda para identificar situações incomuns que podem gerar um alerta para a inteligência. Assim como acontece com as câmeras de reconhecimento facial, que se baseiam em fotos de foragidos, a tecnologia é apenas um 'indicativo' que auxilia as forças de segurança e 'jamais' funciona como veredito ou substitutivo da atuação das polícias", finalizou a nota.
ESTADO ESTÁ SEM CÂMERAS DESDE DEZEMBRO
Desde 1º de dezembro de 2023, as 358 câmeras de videomonitoramento da SDS foram desativadas das ruas de Pernambuco.
A decisão foi tomada após o Tribunal de Contas do Estado (TCE) cobrar, em fevereiro do mesmo ano, a realização de uma nova licitação, já que, desde agosto de 2020, no governo Paulo Câmara, contratos vinham sendo "renovados" por meio de Termo de Ajuste de Contas (TAC) - o que não é o ideal.
A promessa inicial era de que a nova licitação seria publicada ainda em dezembro, mas sofreu adiamentos, sob o argumento de que apenas uma empresa havia demonstrado interesse e que o edital precisava de ajustes.
Finalmente, em 19 de junho deste ano, o edital da prestação de serviço para instalação de 2 mil novas câmeras foi publicado. O investimento, em cinco anos, é avaliado em mais de R$ 216 milhões. Os equipamentos, agora, serão digitais e com inteligência artificial.