Maria Bethânia é ar, trovão e chuva

Publicado em 07/12/2016 às 12:28
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1481119871ee6d39d17f8da394a99cd738b26c3677 Parafraseando o poeta, “Meninos, eu ouvi!”. Corria o ano de 1965, de repente, como um retumbante trovão anunciando chuva no sertão, a voz de uma desconhecida Maria Bethânia reverberou pelo Brasil, ainda abalado pelo golpe militar, acontecido há menos de um ano. A música que cantava era a violenta Carcará (João do Vale/José Cândido), que abria citando trechos da Missa Agrária (Carlos Lyra/Gianfrancesco Guarnieri), e terminava, abruptamente, vociferando um “Pega, mata, e come!!!!”. O país nunca escutara nada igual na música popular. Aquela voz, aquela música, aquela moça, destoavam do padrão. Ainda era tempo do cantor de rádio, das macacas de auditório (como as tietes eram então chamadas no Brasil). Bethânia transgrediu ferozmente o conceito estabelecido do show business nacional. Não era apenas mais uma cantora do disco e de programa de auditório. Era do palco, da canção, da poesia, do teatro. Nunca se vira algo semelhante por aqui. A moça, baiana, tinha então apenas 19 anos, mas nenhuma dúvida do que queria. Como comenta Nelson Motta, que testemunhou a estreia de Maria Bethânia, no musical Opinião, em 13 de fevereiro de 1965: “Eu tinha 20 anos e a primeira vez com Bethânia nunca se esquece”. Meio século depois Maria Bethânia agradece ao povo brasileiro, Norte, Sul, Centro Inteiro com o seu mais bem resolvido DVD, que tem o apropriado título de Abraçar e Agradecer (Biscoito Fino). São dois discos. O primeiro é o registro do show, realizado em agosto de 2015, na HSBC Arena, em que ela celebrava os 50 anos de carreira (turnê iniciada em janeiro). O segundo é um documento laudatório, mostrando homenagens a ela pelo cinquentenário, o samba de enredo da Estação Primeira da Mangueira, em 2016, A Menina dos Olhos de Oyá (da ala de compositores da escola), o tributo que lhe feito foi no Prêmio da Música Brasileira 2015, ou depoimentos de fãs. Bethânia está exuberante no show (a foto da capa é de uma beleza exata. A concepção gráfica do DVD é de Gringo Cardia), com o melhor repertório dos 15 DVDs que lançou, desde 2003, com uma constância de quem entende que não é apenas para ser escutada, ela se inteira em imagem e som. Seu habitat natural é o palco, do qual se tornou a entidade maior da música popular brasileira, entrelaçando dramaturgia, declamação e canto, um modelo que muita gente se arvorou a seguir, mas sem o mesmo efeito ou impacto. A voz de Renata Sorrah (em texto de Bia Lessa) detalha, em minúcias, com legendas em caixa alta, os momentos que antecedem a entrada de Maria Bethânia no palco. E ela surge cantando Eterno em Mim (Caetano Veloso), iniciando um repertório que para, uma panorâmica fiel na sua trajetória, deveria ter Noel Rosa, que interpretava há 50 anos como se fosse uma Billie Holiday tropical. Mas seu universo musical está todo embutido entre a faixa inaugural e o Que é O Que É, de Gonzaguinha, a quem deu interpretações definitivas. O espetáculo é dividido Em blocos que inclui reverências ao Brasil caboclo do ponteado de viola, e ao indígena , este tem a presença da única convidada, Márcia Siqueira, a voz em Macaracandê (Canto Tupi). Fernando Pessoa, Clarice Lispector, alguns dos poetas que pontuam um roteiro sem concessões, espelham a abrangência de Bethânia, onde cabem Chico César (Dona do Dom), ou Custódio Mesquita (Mãe Maria, com David Nasser) e, claro, autores onipresentes em sua obra, Chico Buarque, Gilberto Gil, Dorival Caymmi, os citados Caetano Veloso e Gonzaguinha (em mais de uma canção), Roque Ferreira (uma adesão relativamente mais recente) . Tudo em é Abraçar e Agradecer é de uma elegância vintage, inclusive a banda do show, regida pelo contrabaixista Jorge Hélder, com o piano de Túlio Mourão, violão e violas de Paulo Dafilin, o acordeom de Toninho Ferragutti, violão, bandolim e guitarra de Pedro Franco, cello de Marcio Mallard, bateria de Carlos Cesar e percussão de Marcelo Costa. O grupo tem direito a uma janela para um pot-pourri instrumental de baiões, que congrega Chico Buarque, Caetano Veloso, Luiz Gonzaga, e João do Vale. Mais adiante,  um instrumental da emblemática Carcará. O show tem direção geral e cenografia de Bia Lessa, com alguns resultados surpreendentes, como quando Bethânia canta Meu Amor É Marinheiro (Alain Oulman – versão Manuel Alegre), e as projeções criam a ilusão de que ela paira sobre as águas azuis do mar. É um espetáculo que se desenvolve em moto continuo, só acaba quando termina. Infelizmente termina, com a reconfirmação da grandeza de Maria Bethânia, bem definida no texto de Bia Lessa: “às vezes parece ar, trovão e chuva”. Confiram Maria Betânia ao vivo no show Abraçar e Agradecer: https://www.youtube.com/watch?v=aEwpgZfpUbI  

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