Livro reúne primeiros textos de quando Pernambuco começou a falar e fazer cinema

'Antologia da Crítica Pernambucana: discursos sobre cinema na imprensa', com organização de André Dib e Gabi Saegesser, é lançado nesta quinta-feira pela Cepe em versão física e digital

Rostand Tiago
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Rostand Tiago
Publicado em 26/03/2020 às 17:11 | Atualizado em 26/03/2020 às 17:33
SCENA MUDA/CEPE/DIVULGAÇÃO
CENA DE 'COELHO SAI', 1942, PRIMEIRO FILME SONORO DO NORDESTE - FOTO: SCENA MUDA/CEPE/DIVULGAÇÃO

Esse negócio de fazer cinema é antigo em Pernambuco. Por mais que hoje nossa produção atual ganhe dimensões não vistas anteriormente, essa semente está plantada há quase um século. E o falar de cinema também possui raízes fincadas há muito por aqui, em tempos que produtoras eram fábricas, personagens eram tipos e roteiros eram cenários.

Prova disso é a Antologia da Crítica Pernambucana: Discursos sobre cinema na imprensa, organizado por André Dib e Gabi Saegesser, lançada nesta quinta-feira pela Companhia Editora de Pernambuco (Cepe). A publicação reúne um vasto material jornalístico publicado entre os anos de 1924 e 1948, perpassando pela nascente produção local, o chamado Ciclo do Recife, assim como o olhar de pernambucanos para o cinema nacional e global.

O trabalho nasce a partir das reflexões de Gabi e Jucélio Matos, pesquisador que entra na coordenação do projeto, sobre a existência desse material jornalístico local acerca do cinema. "A gente conheceu o trabalho de Clarissa Diniz, sobre a crítica nas artes visuais no estado. Nos perguntamos se encontraríamos um material desse em crítica de cinema no estado e fomos pesquisar", explica Gabi. Nesse contexto, notaram que as publicações existentes abarcam textos que vão "apenas" dos anos 1950 em diante, como o trabalho de Luciana Correia de Araújo em A crônica cinematográfica do Recife dos anos 50.

Então, foi definido o recorte temporal do projeto, submetido ao edital Funcultura do Audiovisual de 2014. Nesse momento, há também a entrada de André Dib, com ampla experiência com crítica e pesquisa para reforçar o time. "Cada um foi para o lado, em cinco ou seis acervos diferentes, como o Arquivo Público, a Biblioteca Estadual, a Fundação Joaquim Nabuco e todo um trabalho também na internet. Trabalhamos com 16 periódicos e fomos dividindo o trabalho prático de transcrição, seleção e organização", relata André. Ao todo, são 155 textos de 33 autores.

FOTO: HANS SANTOS/DIVULGAÇÃO
ANDRÉ DIB E GABI SAEGESSER, ORGANIZADOR DA ANTOLOGIA - FOTO: HANS SANTOS/DIVULGAÇÃO

Em sua estrutura final, a obra está dividida em quatro partes. A primeira delas, Ciclo do Recife, reúne uma pluralidade de escritos sobre o momento inicial de nossa produção, em meados da década de 1920. O pioneirismo da "fábrica" Aurora Film, o surgimento de nomes como Ary Severo, Jota Soares, Edson Chagas e Gentil Roiz e os esforços financeiros do modo de produção do período estão bem relatados por lá. Levando em conta que, desse ciclo, apenas dois filmes sobreviveram - A Filha do Advogado e Aitaré da Praia - o material ali reunido é fascinante em seu valor memorial.

Começando como algumas notas de caráter mais divulgativo e alguns relatos mais descritivos, os textos escalam para análises sobre as obras, o modo de produção, as dinâmicas sociais e o papel do produção local na modernização do Recife. Entrevistas, bastidores, escritos dos próprios realizadores, tudo em um mosaico vivo de que como funcionava aquela cena. De como se configurava o star-system pernambucano, carregado por nomes como Almery Esteves, atriz que também tinha papel importante na própria concepções dos filmes, assim como algumas intrigas com tintas de colunismo social.

São elementos que tornam possível pensar em alguns paralelos com o cenário atual. "Era algo muito misturado, muitas relações de camaradagem e um momento de ‘vamos todos nos unir para conseguir fazer cinema’. Um ambiente também de poucos detratores e muitos apoiadores, lembrando muito o que a gente viu com retomada nos anos 1990. Já a parte mais fofocas, de língua ferina, vejo como algo que foi mais para internet", afirma André.

"Essa parceria, de um entrando no trabalho do outro, se financiando como podiam e indo atrás de equipamento é algo realmente marcante desse momento no ciclo de 1920 e na retomada dos anos 90, vindo mudar mais com a chegada dos editais e a possibilidade de trazer gente de fora ou remunerar para além da amizade", complementa Gabi.

PERNAMBUCO DEBATE CINEMA

Já em sua segunda parte, batizada de Cinefilia, a intensidade dos debates ganham outros contornos. Aqui, as discussões vão se debruçar por obras, tecnologias, costumes e tensões que orbitam a sétima arte. Aparecem reflexões de nomes como o do sociólogo Josué de Castro, que se desdobra, por exemplo, sobre a questão das adaptações cinematográficas de obras literárias. Dos mais recorrentes, temos autores como Danilo Torreão e Aluizio Coutinho.

Mas, com certeza, se destacam dois nomes, em intensidade de estilo, entusiasmo e volume. São Evaldo Coutinho, em suas contribuições desde jovem para a imprensa local e Nehemias Gueiros, empolgado e apaixonado jornalista/crítico que escrevia nos primórdios deste Jornal do Commercio. É fascinante ver a assinatura de Evaldo, hoje conhecido pela pluralidade de trabalhos sobre arte e filosofia, sendo acompanhada por um "3º annista do Gymnasio Pernambucano", mas já com um senso estético e crítico apuradíssimo.

Já a paixão de Nehemias era denunciada pela pompa de seu estilo e intensidade com que tratava os temas. Era uma persona pintava o cinema nacional como algo que "não passa de um tentativa pouco feliz" para, três meses depois, afirmar que "Quem quiser que duvide da vitória do cinema brasileiro. Eu que não comento mais tamanha ingratidão".

É nesse segmento que ficam claras também disputas e debates no campo estético. "Há tensões marcantes, como a entre o cinema sonoro e o mudo. Outra que é importante trazer é a do cinema nacionalismo contra o cinema americano, que ganha ainda mais força nos anos 1930 e vão entrando elementos como o cinema europeu, em especial o alemão, na disputa", elabora Gabi. Nehemias, por exemplo, entra de cabeça na defesa do cinema sonoro, entrando em minúcias como a questão do idioma nesse novo cenário. O JC faz uma cobertura ampla da chegada do cinema sonoro no Recife, realizada em março de 1930 no Teatro do Parque, pelas mãos do empresário Luiz Severiano Ribeiro.

Os últimos capítulos são dedicados para episódios específicos da história de nosso cinema. O primeiro é sobre a passagem do celebrado Orson Welles (Cidadão Kane, A Marca da Maldade) pelo Recife, como parte de sua bem lembrada e desastrosa vinda ao Brasil, para filmar o malfadado projeto It’s All True (É tudo verdade). "Era um evento que até poderia entrar na parte de cinefilia, mas ganha uma parte especial, pela singularidade do momento, incluindo afirmações, como Welles falando que queria fazer um filme de cangaceiro ou que o frevo parece uma tarantella. Coisas tão exóticas que não caberiam em outro lugar do livro", afirma André.

Já seu último capítulo gira em torno do esforço pioneiro de Coelho Sai (1942), dirigida por Newton Paiva e considerada a primeira produção sonora do norte-nordeste. Trata-se de uma obra que habita até hoje o imaginário e as especulações da cinefilia pernambucana, pois, como boa parte da nossa produção da primeira metade do século, está perdida. Em seu período de lançamento, o longa se tornou um filme-evento, com pessoas não só do meio cinematográfico tecendo opiniões, entre detratores e defensores.

"É um momento mais de fazer um levantamento episódico da cultura local. Ele gera uma nova onda de textos sobre o cinema na cidade, além de polarizar opinião e levar muita gente a escrever e reescrever sobre cinema” diz Gabi. Além das quatro partes, o livro conta com dois anexos: um reunindo os primeiro textos encontrados sobre as primeiras sessões e outro com um raro material iconográfico.

SCENA MUDA/CEPE/DIVULGAÇÃO
CENA DE COELHO SAI, 1942, PRIMEIRA PRODUÇÃO SONORA DO ESTADO - SCENA MUDA/CEPE/DIVULGAÇÃO

Por fim, fica um apelo pela preservação. Os pesquisadores relatam as dificuldades em reunir esse material partiam justamente do estado em que se encontravam em acervos. Ou pior, quando não se encontravam neles. “Existe uma questão maior, que o livro dialoga, que é a memória da imprensa. É uma situação que precisa de mais carinho e políticas. Tem muita coisa se perdendo, a gente encontrou dificuldade de acesso para alguns acervos. Décadas ou períodos inteiros que não podemos acessar no Arquivo Público ou jornais que estavam esfarelando e não pudemos conferir”, conclui André. O Antologia da Crítica Pernambucana está no mercado por R$ 45 (físico) e R$ 13,50 (e-book), ambos na loja virutal da Cepe.

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CAPA DE ANTOLOGIA DA CRÍTICA PERNAMBUCANA - CEPE/DIVULGAÇÃO

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