Quando autores dos mais diversos estados brasileiros - e até de outros países de língua portuguesa - se unem em prol de uma pauta única e universal, surge uma força em que, em uníssono, a pluralidade de cada narrativa consegue brilhar tanto individualmente quanto como parte do todo. E foi em torno do tema da resistência que 32 autores, dentre os quais José Eduardo Agualusa, Luís Fernando Veríssimo, Valter Hugo Mãe, Micheliny Verunshk e Stella Maris Rezende, se unirem - a partir do convite do também escritor Leonardo Valente - para o livro Antifascistas: Contos, Crônicas e Poemas de Resistência (Mondrongo 186 pgs., R$ 39).
Com o lançamento na Primavera Literária, em Paris, adiado devido à pandemia do Coronavírus, Leonardo, a co-organizadora da antologia, Carol Proner, e o editor da Mondrongo, Gustavo Felicíssimo, decidiram realizar não apenas um, mas oito eventos virtuais, envolvendo todos os escritores. A cada quinta-feira, sempre às 16h, no canal do YouTube TV247, um grupo debate as temáticas abordadas no livro. Nesta quinta (28) o Nordeste está na pauta com a presença de Urariano Mota, Maria Valéria Rezende, Hildeberto Barbosa Filho, além dos próprios Leonardo Valente e Gustavo Felicíssimo e de Regina Zappa.
Entre poemas, narrativas ficcionais, crônicas que flertam com o conto e até ensaios um pouco mais técnicos, Antifascistas: Contos, Crônicas e Poemas de Resistência é um rico mosaico em que os protagonistas, por vezes resilientes e por outras mais ativos na luta contra as opressões, são representantes de momentos históricos distintos. A Ditadura Militar, as eleições de 2018, os preconceitos e conflitos familiares causados por discordância política estão presentes.
“Eu queria desde o início que não fosse uma obra engessada e que todos tivessem total liberdade de forma e de gênero literário. O que há em todos é a denúncia de uma sociedade cada vez mais intolerante em todos os sentidos. O livro é uma denúncia contra isso”, pontua Leonardo.
Apesar da intolerância citada pelo organizador ser bastante ampla, foi um acontecimento pontual, ocorrido na Festa Literária de Paraty (Flip) de 2019, que despertou nele a vontade de lançar este livro. “Houve uma manifestação violenta por parte de um grupo de extrema direita no dia da participação do jornalista Gleen Greenwald e eu quis responder de alguma forma a esse ódio. Mas decidi que seria através da literatura, então liguei para Gustavo e na hora ele topou. Quando a Flip acabou eu já estava com dez nomes confirmados, os autores foram todos muito generosos e abertos”, lembra.
Para Carol Proner que, assim como Leonardo e Gustavo, assina um dos textos do livro, a literatura é uma das formas mais efetivas, leves e acessícveis de denúncia contra a intolerância. “O tema que une todos os autores é o da luta pela democracia. É uma reação ao que já vinha acontecendo no Brasil antes da chegada do Coronovírus e que agora ficou ainda mais evidente”, ressalta.
Pluralidade de narrativas
O pernambucano Urariano Mota adaptou um dos capítulo de seu romance A Mais Longa Duração da Juventude (2017) para o conto presente na antologia. O texto é um relato emocionante em que duas grandes características de sua obra estão presentes: a linha tênue entre fatos históricos e ficção, além de uma personagem feminina forte e destemida.
A Última Hora é ambientado nos anos duros de repressão durante a Ditadura Militar e foca no encontro entro o militante Vargas e a advogada Gardênia. O jovem tem certeza que um de seus colegas é um agente disfarçado e que será preso, torturado e morto.
"Para os meus romances, a literatura é memória. Assim tem me acompanhado desde Soledad no Recife, que os leitores até hoje não conseguem separar o que é ficção do que é documento histórico. E a razão disso não é bem uma escolha artificial. Para mim, o real é o dom supremo, e nele reside toda invenção. Os personagens em A Última Hora foram tirados de modelos da vida e história da ditadura no Recife. Por exemplo, Vargas vem de Jarbas Marques Pereira, um dos 6 assassinados no caso da granja São Bento em 1973. A grande advogada Gardênia Vieira é inspirada na imensa advogada Mércia Albuquerque. Os trechos do diário são cópias dos diários de Mércia. Ela foi referência como defensora de presos políticos na ditadura aqui no Recife", conta o autor.
Vale destacar ainda o conto do carioca Marcelo Moutinho, intitulado Janela, em que o abismo social, econômico e cultural que assola o Brasil há tantos anos é posto de maneira mais subjetiva que em alguns textos da antologia, mas não menos significativa e reveladora. Um pedreiro é contratado para abrir uma janela na parede de um apartamento do bairro do Leblon e, por necessitar do trabalho, fecha com a dona do local por um valor inferior ao do mercado. Chegando lá, propõe uma mudança que seria benéfica, mas a contratante se recusa a aceitar por se tratar do quarto da empregada. O texto é curto, mas múltiplas camadas de complexidade social estão presentes em meio à leveza.
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Assim também é o Enquanto o Fogo Avança, do renomado escritor angolano Agualusa. Ele apresenta com muita destreza um silencioso revolucionário de família riquíssima que não se conforma com a postura opressora do presidente de seu país. O jovem mora em Portugal mas consegue articular, através de um perfil fake nas redes sociais, um sentimento de revolta que se difunde com rapidez e culmina em um grande protesto em Angola. Melhor não contar demais pois o final surpreende com uma informação reveladora.
Há ainda o ótimo poema O meu Fascista, da também pernambucana Micheliny Verunshk e o instigante conto Saio não, Senhor, de Maria Valéria Rezende, em que o inconformismo das mulheres de uma pequena cidade de um estado nordestino é narrado de forma sagaz e divertida. E o próprio Leonardo Valente é autor de um texto muito tocante que aborda transfobia, abuso, intolerância religiosa e coragem com muita sensibilidade: Shirley e as Batatas.
Antifascistas: Contos, Crônicas e Poemas de Resistência é mais um exemplo de como a literatura pode ser uma forma muito potente de comunicação e de registro através do qual os leitores serão constantemente provocados pela atemporalidade do tema central.
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