Crítica

Animação 'Os Olhos de Cabul' traz a melancolia da vida sob o fundamentalismo religioso

Estreando a plataforma Cinema Virtual, organizada por exibidoras e distribuidoras nacionais, a animação francesa 'Os Olhos de Cabul' mostra retrato intimista da vida no governo do Talibã no Afeganistão

Rostand Tiago
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Rostand Tiago
Publicado em 29/05/2020 às 14:51 | Atualizado em 29/05/2020 às 14:51
Vitrine Filmes/Divulgação
'Os Olhos de Cabul' está disponível no Cinema Virtual - FOTO: Vitrine Filmes/Divulgação

O Cinema Virtual está no ar desde a última quinta-feira (28). A plataforma reúne distribuidoras independentes do país e seus lançamentos, com a renda indo para o auxílio de exibidores e também das próprias distribuidoras, bastante afetados durante esse período. Após comprados, os filmes, verdadeiras estreias, podem ser assistidos por 72 horas. E sua primeira semana começa com um catálogo interessante, em especial a presença de Os Olhos de Cabul, uma bonita animação francesa que se destacou por sua passagem em festivais como Cannes e Annecy.

Dirigida pela dupla Zabou Breitman e Éléa Gobbé-Mévellec, o filme adapta o best-seller As Andorinhas de Cabul, de Yasmina Khadra. Acompanhamos a vida de dois casais na cidade do título, capital do Afeganistão, durante os anos que foi governada pela organização fundamentalista Talibã. O mais velho deles é formado por Atiq e Mussarat. Ele é vigia em uma prisão feminina e ex-combatente da Guerra do Afeganistão, ela é uma enfermeira que salvou a vida do marido durante o conflito e agora enfrenta uma doença terminal. Já o mais novo é composto por dois jovens professores, Mohsen e Zunaira, afastado de suas profissões e apegados a um possível futuro de mais liberdade.

Os Olhos de Cabul traz uma preocupação em se entremear pela vida privada e os conflitos domésticos de um mundo sob as amarras do autoritarismo religioso. A violência física, a necropolítica e a barbárie estão por lá, mas a forma como ressoam nos lares de quem já viu um mundo menos opressivo é que dá a tônica do filme. Então se estabelece uma encenação de melancolia e apatia. Os olhos são fundo e os olhares vazios, inseridos em um mundo que até é barulhento, entre pregações e tiros, mas parece nunca estar dizendo nada de fato.

E toda apatia e melancolia é reforçada pela animação em si. A dupla da direção opta por um estilo visual sutilmente aquarelado, com contornos nem tão definidos e donos de uma densidade atmosférica que reitera seu tom dramático. Mas é na fluidez da movimentação que talvez esteja a maior reverberação dessas vidas que não conseguem encontrar plenitude no espaço em que habitam. Há uma vagarosidade nos deslocamentos e gestos que ressalta um abatimento interno, um tempo que passa mais devagar e marca de uma forma física toda a carga de frustrações que ali vivem. Ao mesmo tempo, nos raros momentos em que é possível vislumbrar alguma ternura, essa movimentação também impõe um gosto agridoce a ações e momentos menos duros.

Tal identidade visual também ressalta o ambiente de ruínas habitadas dada a Cabul. É um espaço que também vai contar uma história a partir do que não está mais ali e do que foi tirado de sua essência. Uma trave de futebol vira uma forca, uma universidade se transforma em um sítio arqueológico amador. Por vezes, há até um didatismo inoportuno ao lidar com essas transformações, utilizando flashbacks ilustrativos até demais. Na verdade, esse didatismo também acaba afetando o melodrama proposto, fragilizando-o com suas verbalizações e exposições que acabam minando de certa forma sua sutileza poética. Mas ainda assim, sua atmosfera continua potente e seu impacto emocional ainda é forte no final de tudo.

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