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'Ligue Djá': Vida fascinante de Walter Mercado é tema de documentário

FENÔMENO No auge de sua popularidade, astrólogo chegou a ser visto simultaneamente por cerca de 120 milhões de espectadores

Márcio Bastos
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Márcio Bastos
Publicado em 15/07/2020 às 9:11 | Atualizado em 17/07/2020 às 10:43
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MUCHO MUCHO AMOR Positividade e mistura de religiões, mais astrologia, constituíram-se o cerne das mensagens de Walter - FOTO: NETFLIX/DIVULGAÇÃO
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"Você acredita em astrologia?", pergunta a entrevistadora ao dono de um restaurante em Miami. "Eu acredito em Walter e em tudo que ele faz e diz", responde o empresário. Esse breve diálogo, presente no documentário Ligue Djá: O Lendário Walter Mercado, recentemente lançado pela Netflix, ajuda a enfatizar o fascíno exercido pelo ícone porto-riquenho. Com suas performances dramáticas, positividade, androginia e indumentária exuberante, o ator, dançarino e astrólogo marcou a cultura pop latino-americana, chegando a ter uma audiência de mais de 120 milhões de espectadores no auge de sua carreira. 

O título brasileiro do documentário alude à expressão pela qual Walter Mercado ficou conhecido no país quando lançou aqui o serviço telefônico de astrologia nos anos 1990. Em meio a uma febre de atrações místicas na mídia, ele já era um ícone nos países de língua hispânica, com participações em programas de rádio e televisão, além de um império de produtos esotéricos. No Brasil, porém, sua fama ficou circunscrita às propagandas veículadas na TV, nas quais ele persuadia, com um sotaque carregado, o público a consultarem o futuro com seus discípulos.

A adoração em torno da figura de Walter aconteceu quase que por acaso. Entre as décadas de 1960 e 1970, o porto-riquenho era um artista já reconhecido nos palcos, como ator e bailarino, e também nas telenovelas de seu país. Quando foi ao estúdio da Telemundo gravar uma propaganda para a peça Um Tríptico de Amor, Dor e Morte, ele apareceu vestido como um príncipe hindu, com um manto branco, muita maquiagem e joias. O visual chamou a atenção do produtor, que pediu que ele fizesse uma participação em um programa lendo o horóscopo.

Com aquele visual exótico, os trejeitos teatrais e um carisma singular, sua aparição fez sucesso e logo ele ganharia um quadro próprio. Suas mensagens eram sempre positivas, fundiam princípios de diferentes religiões, como cristianismo, budismo, entre outras, e tinham caráter de autoajuda. Suas previsões terminavam com o mantra "Que recebam de mim sempre paz e, sobretudo, muito, muito amor", que se tornaria um bordão nos países latinos.

O sucesso só fez aumentar e sua identidade começou a mesclar-se com a do personagem que apresentava na televisão até que fossem indissociáveis. Em alguns anos, ele alcançaria toda a América Latina com seus programas, além de ganhar forte inserção na comunidade hispânica nos EUA.

Em meados dos anos 2000, porém, Walter sumiu da mídia. Para muitos, essa ausência só aumentou o mito em torno da sua figura, mas as razões para a reclusão foram puramente jurídicas. Mercado alega ter sido ludibriado a assinar um documento segundo o qual vendia todos o licenciamento de seu nome - e consequentemente de todos os produtos ligados a ele, inclusive os programas de televisão e rádio - ao seu então empresário e protegido, Bill Bakula. 

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ESTILO Com seus mantos exuberantes, jóias e cabelo sempre impecável, astrólogo criou um visual marcante - NETFLIX/DIVULGAÇÃO

Ainda que aborde os imbróglios legais e toque nas acusações de charlatanismo feitas contra o porto-riqueno, o documentário dos diretores Kareem Tabsch e Cristina Costantini é, antes de tudo, um filme afetuoso, uma reverência à importância de Mercado para milhões de pessoas de diferentes gerações.

No longa, imagens de arquivo são alternadas com depoimentos de amigos, colaboradores, familiares e admiradores do artista, além do próprio Walter Mercado, à época das gravações com 87 anos e a saúde debilitada, mas ainda com uma presença magnética.

Com acesso privilegiado à intimidade do artista, os diretores abordam a complexidade daquela figura que conseguiu romper com vários preconceitos, como os em torno de sua sexualidade. Ícone da comunidade LGBT, Mercado nunca se assumiu, mas sua figura andrógina e seus gestos que desafiavam estereótipos de gênero e noções de masculinidade, ajudaram a abrir caminhos para as pessoas queer em uma cultura à época marcadamente homofóbica.

"Ser um jovem homossexual e ver Walter Mercado me deu esperança. Eu via Walter e pensava: 'Não sou tão diferente'. Ele era um homem na televisão quebrando todas as regras. Vai além de se assumir", afirma o ativista LGBT Karlo Karlo em seu depoimento. "Super-heróis usam capa e, para mim, Walter é um super-herói".

Escrito nas estrelas

Para além de uma homenagem nostálgia, o filme constrói um delicado e poderoso retrato sobre a passagem do tempo e lança uma necessária luz sobre o envelhecimento dos ídolos midiáticos. As diretoras capturam as limitações cada vez maiores impostas pelos problemas de saúde do astrólogo, balanceando-os sempre com o bom humor, a vaidade e perspicácia e talento de Walter Mercado. 

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ÍCONE Porto-riquenho marcou gerações e tem fãs famosos como o ator Lin-Manuel Miranda - NETFLIX/DIVULGAÇÃO

É particularmente emocionante vê-lo em uma sessão fotográfica para divulgar a exposição em comemoração aos seus 50 anos de carreira como fenômeno televisivo, realizada no Museu de História de Miami. Por muitas vezes, ele precisava parar para sentar e descansar, pois o peso das capas e o tempo que passava em pé o desgastavam. Mas, bastava mirar para as câmeras e suas poses fabulosas comandavam a atenção de todos.

Poucas semanas antes da abertura da exposição, Walter sofreu um acidente e ficou com os movimentos comprometidos. Resiliente, ele vai à abertura, onde é ovacionado. Walter morreria poucos meses depois da abertura, em novembro de 2019.

A força da sua representatividade no entanto, continua fortíssima na cultura pop, como mostra a boa recepção do documentário e as referências à sua figura, seja nos memes da internet ou em homenagens em diferentes plataformas, como aconteceu recentemente no reality show estadunidense RuPaul's Drag Race: All Stars, um dos mais populares entre a comunidade LGBT.

Ligue Djá é uma grande celebração de alguém que foi exitoso em fabricar seu próprio mito a despeito das convenções sociais, oferecendo uma alternativa fabulosa e esperançosa para tantas pessoas que, como ele, queriam e querem ser mais do que as regras sociais e os preconceitos tentam impor.

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POP Artista Alexis Mateo recentemente homenageou Mercado no reality RuPaul's Drag Race All Stars - INSTAGRAM/REPRODUÇÃO

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