Prestes a completar 30 anos de estrada, o Dead Fish lançou há alguns dias o que se pode chamar de 9º álbum da carreira. Trata-se, na verdade, de um compilado, batizado Lado Bets, reunindo dez músicas, que vão de sobras de estúdio a singles, versões e "faixas escondidas" gravadas entre 2004 - ano de lançamento do já clássico Zero e Um - e 2019, quando a banda capixaba de hardcore concebeu seu último de inéditas. O disco tem selo da Deck e está disponível para audição em plataformas de streamig e no YouTube.
"Era para ser um EP, mas achamos tanta coisa legal que virou um álbum", explica o vocalista Rodrigo Lima sobre Lado Bets, cujo resultado é fruto de uma pesquisa feita em parceria com o produtor Rafael Ramos durante a forçada quarentena necessária para barrar o contágio pelo novo coronavírus.
O destaque vai para as que datam do início da década passada, a exemplo da rápida Décimo Andar (2005), com duração de um minuto e feita para um projeto da finada MTV Brasil, A Recompensa (2006), à época, um extra para quem conseguisse o código colocado dentro do CD Um Homem Só, e Manic Nonlinear, tributo ao Manic Compression (1995), segundo álbum do Quicksand. É um bom apanhado do que o Dead Fish fez nas últimas décadas para além da formalidade do que contém os álbuns fechados.
Lado Bets, além disso, é um passeio pela contribuição de alguns dos músicos que ajudaram a solidificar o Dead Fish como uma das mais importantes bandas da cena hardcore nacional desde a fundação, em 1991. Aparecem lá nomes como os do baterista Leandro Nô, do guitarrista Philippe Fargnoli e o do baixista Alyand Mielle, que integrava o quarteto desde 1996 e precisou se afastar em 2018 para tratar três hérnias de disco na coluna. A atual formação do Dead Fish tem Rodrigo Lima no vocal, Ricardo Mastria na guitarra, Igor Tsurumaki no baixo e Marcão Melloni na bateria.
PONTO CEGO
As mais recentes entre as dez escolhidas para a "coleção de raridades" são Sem Remédio e O Outro do Outro, sendo esta última originalmente um bônus da versão em mídia física de Ponto Cego, álbum de estúdio lançado também pela Deck, gravadora para a qual a banda retornou depois de sete anos, em maio de 2019. Assim como todo o disco, a faixa foi mixada por Bill Stevenson, produtor, baterista da californiana Descendents e ex-Black Flag.
Há nela ainda a marca umbilical que une todas as demais 14 tracks do registro, a menção ao ponto cego do título, referência direta ao eixo temático explicitamente esmiuçado da abertura - A Inevitável Mudança -, ao desfecho, Descendo as Escadas: o cenário sociopolítico contemporâneo, com ênfase, claro, ao que se passa no Brasil. Estão lá, entre outros subtemas, o jogo de poderes, a ganância, as inúmeras contradições repetidas sem critério e sem análise pelo cidadão médio brasileiro, elitismo, racismo e, evidentemente, a cegueira generalizada a respeito das complexas relações políticas nacionais que se retroalimenta de tudo isso.
"Ganhar mudando as leis/Viver sem competir/Desaprender a enxergar e a sentir/O ponto cego desumaniza o outro/Nega e anula o outro, e o outro/Do outro, do outro", diz trecho da letra de O Outro do Outro, direta e propositalmente sem deixar espaço para divagações ou suposições em cima do que é exposto. "Ele (o álbum Ponto Cego) não me emociona num nível de alcançar as profundezas do meu sentimento. (Ele) é tudo que já está aflorado, é uma raiva trabalhada", pontua Rodrigo Lima em documentário com os bastidores da gravação do álbum.
Em entrevista para o canal da 89 - A Rádio Rock no YouTube, dias antes do lançamento do Ponto Cego, Rodrigo explica que este foi o primeiro álbum no qual contou com um parceiro na criação das letras, principalmente porque sentiu necessidade de ter um contraponto à intensa fúria que vivenciava e precisava passar para o papel. "Escrevi com o Álvaro Dutra (também músico, produtor e nome à frente do selo Prótons), amigo meu de Brasília, porque se não ia ser um disco só de palavrão. Eu queria ter certa classe", diz Rodrigo.
O frontman aproveitou a mesma ocasião para mais uma vez citar que este seria, enfim, o último trabalho do Dead Fish em formato de álbum cheio, com músicas pensadas, compostas, distribuídas e trabalhadas como conjunto - o que ele considera gerar menos engajamento, principalmente entre os mais jovens, se comparado ao atual modo de se consumir música, quando há preferência por singles. Para a alegria de seus seguidores, a banda, ao que indica a chegada de Lado Bets, deve repensar a ideia.
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