A dança georgiana é um motivo de orgulho nacional e sua estrutura e execução, que exigem uma postura altiva e endurecida dos bailarinos, entre o bélico e o belo, celebra mitos como a bravura e a masculinidade dos homens do país. Em E Então Nós Dançamos, de Levan Atkin, esses símbolos são desafiados em um complexo e sensível comentário sobre a sexualidade e o amadurecimento em meio a uma sociedade homofóbica. O longa está disponível gratuitamente na plataforma do Sesc Digital até o dia 30 deste mês.
Uma co-produção da Geórgia, França e Suécia, o filme acompanha Merab (Levan Gelbakhiani), que desde a infância integra o balé oficial do país, em uma de suas categorias de base. Ele sonha em ascender ao corpo de baile principal e ensaia com afinco para atingir sua meta, dividindo-se entre os ensaios e o trabalho como garçom, ao contrário do irmão David (Giorgi Tsereteli), que constantemente perde as aulas após noites de bebedeira.
Introspectivo e sério, Merab tem uma aparência frágil e seus movimentos, apesar de corretos, expressam uma sensibilidade rechaçada pelo cânone da dança. Ele vive uma relação com Mary (Ana Javakhishvili) que parece mais pendente para o lado da amizade do que do carnal.
Seu mundo metódico começa a se transformar com a chegada de Irakli (Bachi Valishvili) à turma. Ele parece a antítese de Merab: extrovertido e irreverente, consegue performar a virilidade necessária para os passos de dança aparentemente sem esforços, coloca-o em disputa por uma vaga no posto principal.
Aos poucos, a relação de amizade entre ambos vai se estreitando e naturalmente se transmuta em uma atração mútua. Quase como uma coreografia, o processo de sedução entre ambos é trabalhado com delicadeza por Levan Atkin. Os conflitos internos do protagonista não são tratados por uma perspectiva tortuosa e sim de encantamento - à medida em que toma mais consciência de seu desejo por Irakli, Merab se torna mais impulsivo e ciente de si.
SEXUALIDADE
Esse processo de descoberta e vivência da sexualidade é inserido no contexto daquela sociedade que, para a maior parte do Ocidente, é quase desconhecida. Entre a Europa e a Ásia, nas montanhas do Cáucaso, a Geórgia é o único país daquela região a proibir por lei a discriminação da comunidade LGBT, mas a homofobia ainda está enraizada na cultura da nação, que por anos foi anexada à União Soviética. Tanto que a equipe sofreu pressões durante as filmagens e, na estreia no país, grupos de extrema-direita foram aos cinemas protestar, muitas vezes com ameaças de violência.
Nesse sentido, a dança georgiana é um instrumento que funciona como um mantenedor da tradição e atrela à identidade do país o caráter heteronormativo, ainda que Atkin, que é sueco de descendência georgiana, consiga explicitar como sua estrutura também possibilita a criação de tensões homoeróticas.
A diminuta cena LGBT da capital Tiblissi, as dinâmicas familiares, as tradições (um plano sequência filmado durante uma festa de casamento é de tirar o fôlego) e as contradições: tudo é trabalhado por um olhar mais preocupado em entender do que julgar.
Esse, inclusive, é um dos grandes trunfos do filme, que trabalha esses pontos a partir da complexidade de seus personagens, jovens com sonhos, desejos de mudanças, de modernidade. Mary, em específico, cita países da Europa como paraísos para os quais eles precisam rumar, mas a perspectiva também parece impulsionar Merab, que evoca as memórias dos dias de glória dos pais, que já dançaram nos principais palcos do mundo.
A sombra dos pais, e a família como um todo - talvez como uma metáfora do próprio país -, é outro ponto trabalhado com habilidade pelo roteiro. Merab ouve do pai, inclusive, que deveria se dedicar aos estudos para não acabar como ele fisicamente cansado e mal financeiramente. Esses conflitos de perspectiva de mundo, de tradição e modernidade, são perfeitamente capturados no emocionante diálogo final entre o protagonista e seu irmão.
E Então Nós Dançamos utiliza a arte cênica como uma metonímia de uma sociedade - e também como a força motriz capaz de transformá-la. O amadurecimento de Merab é refletido paulatinamente em seu corpo, na descoberta de sua própria maneira de portar-se frente ao mundo e aos símbolos de poder e opressão, como fica evidente em uma das sequências de dança mais fortes do filme (e do cinema recente).
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