R&B

O R&B abstrato de Liv.e e KeiyaA em discos fluxo

Artistas norte-americanas desconstroem, cada uma a sua maneira, a canção R&B para propor ao ouvinte uma viagem sensorial em texturas, sentimentos e abstrações líricas

João Rêgo
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João Rêgo
Publicado em 26/08/2020 às 18:55 | Atualizado em 27/08/2020 às 14:29
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Dentro do espectro do gênero, Liv.e e KeiyaA desenvolvem universos autorais para confessarem dores, declamarem poesias e falarem abertamente de sentimentos - FOTO: Reprodução

“Eu sei, eu sei que você achou que a música tinha acabado...Mas isso está incorreto porque a vida continua/ E a energia nunca morre, não é?”, sussurra Liv.e para o ouvinte na transição de melodias dentro de uma das suas canções.

A composição é Lessons From My Mistakes...but I Lost Your Number, onde a artista reflete sobre a ação do tempo em um flerte que nutria no passado.

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Depois do interlúdio, o beat muda e o tom também. Liv.e agora libera a voz e canta para o presente: “O momento é certo/ Você garantiu que eu realmente não te esquecesse, baby”. Mas o título adianta: ela perdeu o número do pretendente.

Toda essa dilatação temporal, beats lofi, neo-soul e R&B de sentimentos fragmentados são só um aperitivo em uma das 20 músicas do álbum Couldn’t Wait To Tell You, lançado neste mês pela norte-americana.

Em março, a cantora KeiyaA propôs um caminho paralelo no projeto Forever, Ya Girl. “Longe por tanto tempo, eu prefiro passar um tempo sozinho com minha dor/ Longe por tanto tempo, eu mal consigo me lembrar a última vez que meu telefone tocou”, canta em Hvnli.

O loop instrumental que acompanha a música foi composto dois anos antes do seu lançamento, enquanto KeiyaA fazia uma sessão de DJ. Ela posteriormente completou Hvnli com sons usados em vários dos seus sets.

“Alguns beats têm seis anos. Algumas músicas eram peças semi-escritas que eu fazia freestyle e improvisava ao vivo”, contou em entrevista ao site DJBooth.

Tanto em Liv.e quanto em KeiyaA, há uma falta de estrutura calculada nas composições e como elas serão dispersadas ao longo do álbum. Sons esfacelam ou soam como sketches, às vezes se conectam uns com os outros, às vezes se cortam bruscamente.

Acima de tudo, há uma compreensão da imersão emocional proporcionada pelo R&B – o casamento entre a potencialidade da voz e a aproximação sentimental das letras. Em oposição a isso, seus projetos abusam do refrão que tarda a chegar, o instrumental sampleado que repete e se mistura com suas vozes, spoken-words e músicas de curta duração.

Dentro do espectro do gênero, Liv.e e KeiyaA desenvolvem universos autorais para confessarem dores, declamarem poesias e falarem abertamente de sentimentos. Os processos nem sempre são os mesmos, e os resultados também não.

KeiyaA desconstrói a canção pela improvisação e aglutinação de ruídos. Já Liv.e a reinventa em uma versão de baixa fidelidade com controle total sobre o lirismo e o tempo. Em comum, ambas irão substituir o produto pronto, para propor ao ouvinte uma viagem sensorial em texturas, sentimentos e abstrações líricas.

No início do século, o crítico de cinema francês Stéphane Boquet escreveu: “Desaparece, no fundo, o olhar organizador do mundo (o conceito estético de campo remete evidentemente à delimitação de um mundo, o do autor) em proveito de uma concepção do artista como quem faz circular as imagens”. O excerto é do célebre texto Plan contre flux, publicado na Cahiers du Cinéma nº 566.

A ideia era conceptualizar as tendências do cinema na virada do século, menos interessado na mise-en-scène clássica e mais em conceber um fluxo contínuo de imagens. Em outras palavras, a organização pré-estabelecida pelo artista era substituída por uma ideia de descontrole ou controle em torno de um elemento externo a obra.

“Estou tão cansado como você vê/ Eu tenho caminhado por uma longa estrada e/ Eu tenho vivido tanto tempo quanto minha alma existe”, canta Liv.e em I Been Livin, uma das músicas mais sublimes do álbum.

Ela vocaliza em ritmo monocórdico sobre um beat lo-fi contínuo. O refrão é repetido e se une aos versos. Durante 3 minutos e 45 segundos, Liv.e mistura uma melodia estática e letras sobre deslocamento. O resultado é um som flutuante, de embarque constante, e menos de uma catarse localizada em refrões ou momentos específicos.

Dado os elementos conflitantes, esse processo soa quase como dialético. O que Liv.e faz, no entanto, é um descontrole temporal – abdicando do “olhar organizador”, para fazer com que os sons e letras “circulem” na composição.

Na música em geral, essa é uma tendência quase intrínseca a arte em si: das relações entre ritmo e corpo até a ideia mais imediata dos sentidos que ela abrange. O que não quer dizer que isso seja plenamente explorado.

No "R&B mainstream", When I Get Home (2019), de Solange Knowles, e IGOR (2019), de Tyler, The Creator, são os mais recente discos aclamados a trabalharem esses conceitos. Inclusive, um dos nomes por trás do projeto de Solange, Dev Hynes (o Blood Orange) construiu toda sua carreira a partir da ideia de canções em fluxos semânticos; basta escutar Coastal Grooves (2011) ou Negro Swan (2018). Mais densos, os primeiros trabalhos de Frank Ocean também são fundamentais para o debate.

O que diferencia, então, os trabalhos de Liv.e e KeiyaA dessa leva de renome comercial?

Talvez o caráter experimental e autoral permitido pela condição mais independente das produções dos discos – uma cisão dentro da cisão. É importante ressaltar que tanto Couldn’t Wait To Tell You como Forever, Ya Girl foram concebidos durante a quarentena, o que impactou na abordagem temática e logística.

Liv.e produziu o álbum junto ao produtor mejiwahn e o multi-instrumentista Daoud Anthony, conhecido por ter trabalhado em Care For Me, do rapper Saba, e compor a música do projeto 1619, do New York Times, vencedor do Pulitzer.

Os beats são na sua maioria lofi, samples, loops de jazz instrumental ou cantado. Em How She Stay Conflicted...I Hope He Understands, por exemplo, ela faz dueto com o beat. “Oooh baby, espero que você entenda que estou realmente indo embora desta vez”, acompanha junto a uma voz masculina em loop.

Esse teor “do it yourself” misturado ao isolamento e uma lírica mais imatura faz com que as faixas ganhem em aproximação sentimental com o ouvinte. Daí não necessariamente se exigir os grandes refrões cantados, todo esse entorno se encaixa na ideia de um trabalho aberto a significações e embarques constantes.

Liv.e herda muito de Erykah Badu (uma amiga de família, inclusive) em construções narrativas astuciosas de histórias de amor densas – de Lessons From My Mistakes...but I Lost Your Number a Green Eyes, do clássico Mama’s Gun (2000).

Mas se tem um trabalho a ser relacionado ao seu disco é a mixtape But You Caint Use My Phone (2015), onde Badu se permite brincar com uma temática específica para desconstruir estruturas das suas canções mais célebres. O que inclui a abertura de ter várias faixas todas rimadas por rappers (em Liv.e com o seu parceiro de longa data Lord Byron)

Couldn’t Wait To Tell You também soa um pouco chopped and screwed – as composições são propositalmente mal mixadas e às vezes com menos de dois minutos de duração. É por esse caminho que o disco se insere numa leva de trabalhos do que antes podia ser considerado uma cena underground do “rap” (que, inclusive, Liv.e possui várias participações especiais).

Ao que parece, as características estão ligadas, à princípio, a um tipo de produção inventiva de renovação do lofi – que para a cantora tem como inspiração máxima o produtor J Dilla. Maxo, Pink Siifu, Mavi, MIKE e Earl Sweatshirt, mas também Knxwledge, Mndsgn, Alchemist a Black Noi$e, Adé Hakim e Ovrkast exercitam sonoridades próximas (mas diferentes) que não se resumem ao rap. Couldn’t Wait To Tell You é um exemplo.

Outro exemplo é Forever, Ya Girl, que por sinal foi feito quase todo por KeiyaA sozinha, com exceção das colaborações do rapper MIKE, sob o pseudônimo de dj blackpower.

Aqui, os sons são mais desenhados e bem mixados, o que se opõe a toda construção experimental das canções. São versos quebrados, às vezes sem refrões, assimétricos mas sempre inventivos.

Em Every N*gga Is a Star, KeiyaA picota a canção original de Boris Gardiner em versos, como uma poesia. “Todo n*gga é uma estrela/ Sim, isso inclui eu e você/ mães, pai, primo, irmãs, eles também”, canta em um deles, que é seguido por outro abordando uma nova perspectiva e temática.

Se em Liv.e o fluxo proposto é pelo embarque em movimento de beats que encontram sua voz, para KeiyaA o caminho é o contrário. A voz da cantora sobrepõe-se ao instrumental para expor seus sentimentos – o que a permite transitar entre vários tons líricos.

“Por quê você não me ama?/ Eu sou tão fácil de se amar”, canta repetidamente em I Thot There Was One Wound in This House, There’s Two, canção composta basicamente pela repetição do verso. Já em Negus Poem 1 & 2, ela finca “Quem deveria lutar ou morrer por mim, senão eu?/ Não tenha medo, saiba que você é divino! Real Negus nunca morrem”.

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