Durante o Festival de Cannes em 2002, o crítico Jean-Marc Lalanne captava um horizonte estético para o cinema naquela época. “Um fluxo esticado, contínuo, um escorrer de imagens na qual se abismam todos os instrumentos clássicos mantidos pela própria definição da mise-en-scène: o quadro como composição pictural, o raccord como agente de significação, a montagem como sistema retórico, a elipse como condição da narrativa” descreveu em publicação para a revista francesa Cahiers du Cinéma. O texto, intitulado de “Que plano é esse?”, anunciava uma tendência: concepções de planos mais clássicas davam lugar à abordagens mais experimentais; uma experiência que recusava a apreensão imediata, agora priorizando o embarque em símbolos.
Longe dos planos, mise-en-scène e câmeras, toda essa discussão sobre cinema parece estar descambando sobre a arte no geral, em especial, na música contemporânea. E um dos principais responsáveis por isso é o britânico Dev Hynes.
Mesmo tendo relações diretas com o cinema – é de sua autoria boa parte da trilha sonora de Palo Alto (2013), de Sofia Coppola –, as características da sua obra não estão ligadas propriamente à sétima arte. Bem mais fundo, Dev Hynes compreende a potência universal dessas ideias e as executa dentro do seu campo de atuação, seja como produtor ou cantor.
Sob o pseudônimo de Blood Orange, o artista assina projetos que propõem verdadeiras viagens sonoras em texturas, sensações e iconografias. Seus trabalhos concebem estruturas clássicas ou vigentes no R&B moderno para quebrá-las em fluxos abertos à significações e embarques.
Em Coastal Grooves (2011), seu álbum de estreia, bases mais tradicionais vão se reinventando dentro dessa lógica. Seu segundo projeto, Cupid Deluxe (2013), aprimora esse processo inserindo pequenos, mas potentes, detalhes nas suas composições – as participações especiais, por exemplo, ficam sob o fundo, estão lá como adereços de um todo, aparecendo em maior ou menor frequência quando necessário se encaixarem nos fluxos propostos. Freetown Sound (2016) leva isso à uma roupagem mais pop, principalmente nos features de nomes como Debbie Harry e Carly Rae Jepsen. Por último, o mais recente Negro Swan (2018) conseguiu sintetizar tudo isso no que é o seu melhor trabalho até agora.
Marco na carreira do artista e na música em geral, o álbum é influencia direta para trabalhos recentes como When I Get Home, de Solange Knowles, e IGOR, do rapper Tyler, The Creator. Discos mais interessados em entregarem viagens sensoriais dentro de suas propostas, do que produtos mais prontos e redondos (mesmo que para isso não assumam uma linguagem radicalmente experimental).
É por esse caminho que Negro Swan estabelece seu próprio fluxo-temporal – escutá-lo é adentrar em uma experiência única. Particular e intimista, na medida que conserva, desde seu título, a figura do cisne como solitário e único. Mas, igualmente ampla e politicamente forte, no sentido de também suscitar discussões acerca da realidade social de vivências negras, LGBTQs e de classes sociais menos abastadas. E aqui – continuando os paralelos com o cinema, Negro Swan parece ser herança direta de um movimento cinematográfico negro com as mesmas características, mas anterior às observações do texto inicial, o L.A. Rebellion.
Através de pianos elétricos, sintetizadores, música pop e soul, Blood Orange faz o mesmo que Charles Burnett executa com a câmera. São registros potentes de uma realidade afrodiaspórica, concebida dentro de suas particularidades, iconografias e experiências sensoriais. Seus trabalhos são, sobretudo, sismografias de corpos negros em fluxo – destituídos de qualquer clausura interpretativa.
ANGEL’S PULSE
Esses processos foram recentemente acentuados no seu mais novo trabalho: Angel's Pulse. Mixtape, e não álbum como indicou na divulgação, a alcunha não foi ao acaso. O projeto soa como um epílogo. As transições entre as canções, por exemplo, sofrem cortes abruptos, e mesmo sendo 14 delas, a duração total não passa de trinta minutos. O que, no entanto, está longe de ser um problema. Essas nominações permitiram que o artista ficasse livre para atingir de experimentações mais altos.
Os cortes, algumas produções mais sujas, canções que parecem sketchs de algo maior, parecem captar um sentimento de imediatismo numa realidade fragmentada. A melancolia de Negro Swan está ali, mas agora ela é mais colorida e até musicalmente mais diversa. Composições como Gold Teeth e Take it Back trazem agora, por exemplo, rimas viscerais de Project Pat e Joba, enquanto Dark & Handsome encontra em Toro Y Moi um novo caminho para seus sintetizadores anos 80.