A recifense Ana Luiza Souza, 34, nunca teve dúvidas de que a cozinha era seu destino e vocação. E não estava errada. Precisou corrigir a rota, no entanto. O sentido de urgência intrínseco ao ritmo dos restaurantes não lhe pertencia. Ela entendeu cedo que o tempo de cada um precisa ser soberano.
Que não se empregue a palavra "amador" para definir quem não se encaixa nos padrões. Basta uma colherada dos doces preparados por Ana Luiza para entender quantos degraus ela galgou em direção à excelência na confeitaria, sua área preferencial de atuação.
Do curso em hotelaria na UFPE, passando por estágios, no Brasil e fora dele; carteira assinada por alguns a microempresária que abriu loja para vender bolos. Só depois de experimentar, Ana Luiza escolheu se o que lhe cabia eram avenidas ou vielas tranquilas.
Resolveu ensinar. Um curso por ela criado, em 2018, e batizado como Tempo de Preparo. Mais que uma grade curricular, um manifesto. Era sobre bolos, mas era principalmente sobre o continuum que é a vida.
O título contém sua crença. Que em vez de se pensar no "tempo de preparo" como parâmetro obrigatório de toda receita, especificado em minutos, que se concebam amores, saudades, paisagens, músicas, filmes. A confeitaria é a sua linguagem, o idioma escolhido para transmitir-se ao mundo.
O correto seria afirmar que Ana Luiza se volta para um "templo do preparo", conotação completamente desvinculada da extensão de duração da tarefa de misturar ingredientes. Ela é relativa, assim como é variável o tempo que cada um de nós leva para fechar ciclos e se dar por satisfeito com o resultado obtido.
"Sou incapaz de falar quantos minutos eu precisaria para transformar meus sonhos em recheios cremosos, meus versos preferidos em massas saborosas e os amores que me marcaram em texturas surpreendentes", declara-se Ana Luiza, em vídeo que divulga no Instagram sobre sua percepção do ofício.
Durante o período do distanciamento social surgiu o delivery, mas também este foi exercido nos seus moldes. Entregas só de 15 em 15 dias. Em seu perfil no Instagram (@souzanaluiza), ela divulga o cardápio, que não é fixo, até a quarta-feira da semana das remessas, que só são realizadas aos domingos, ao longo do dia, até as 16h30. O pagamento é antecipado, por transferência bancária. Uma coisa é certa: o que é anunciado é comprado.
São cerca de 10 itens, mas a autora já pensa em reduzir para seis. Na semana de preparo, tudo muda em sua residência, onde fica o ateliê. É quando se coloca em prática a função "templo" e se esquece do tempo. A confeiteira se encarrega de todas as tarefas, com ajuda do seu companheiro. É ela quem faz as compras, quem monta a praça, iniciando um processo que, dependendo do doce, pode ter até 30 etapas. Quando finalizado, confia o produto a um casal amigo que entrega de casa em casa.
REVOLUÇÃO EM SI
O modus operandi de Ana Luiza é emblemático nesses tempos de pressa que cobra um preço alto à saúde física e emocional (ver matéria ao lado). Todos sabem disso, mas poucos decidem modular suas rotinas de acordo com a capacidade que possuem de lidar com a pressão — e este é um termômetro bem particular.
Não peçam a Ana Luiza orçamento para uma mesa de doces. Ela não faz. Tampouco aceita encomendas para bolos inteiros, os seus são servidos em fatias generosas. Aos pedaços, como se cada um que os pedisse participasse de uma festa de aniversário remota, feita para pessoas que não necessariamente se conhecem.
Não é capricho, é convicção: "Não conseguiria suprir a urgência das pessoas. Para mim, é impossível conceber um bolo em 48 horas. Isso porque ela escolheu intercalar o seu tempo com outras atividade que ama e que, no fim, retroalimentam a criatividade culinária. É preciso existir uma sinergia em suas "fomes", em várias áreas". "Tem que ser bom para quem vai comer e para quem vai fazer", costuma dizer.
Ana Luiza reconhece o campo da gastronomia profissional como elitista e sexista. "Ser mulher é difícil, mulher preta ainda mais", opina. Oriunda de família de classe média, diz reconhecer em si os privilégios que seus pares não usufruíram. "Os corpos pretos não vivem um lugar de prestígio. A presença do negro no comando de uma cozinha ainda é algo novo", afirma.
Ana Luiza não vive o tempo que nós vivemos. Ela vive o tempo do seu pudim, que pode levar até três dias para atingir o ponto que ela considera ideal. Ela aprendeu a esperar e ser feliz na espera.
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