O reconhecimento dos horrores que ocorreram no passado às vezes são articulados em instâncias complementares. Tanto podem ser registros históricos, documentais, que jogam luz diretamente sobre os fatos, como aqueles que apenas os tangenciam: uma música, um recorte de jornal.
Há, ainda, a dimensão narrativa da memória, que ganha contornos diferentes, dependendo de quem a reaviva e em qual momento tal construção é realizada. Esta última categoria tem na palavra uma de suas principais matérias-primas, e é nela que se ancora o documentário Narciso em Férias, disponível desde segunda-feira no Globoplay e exibido no Festival Internacional de Cinema de Veneza.
Renato Terra e Ricardo Calil, a mesma dupla de diretores que conduz Narciso em Férias, já havia feito o registro do Festival da Música Popular Brasileira da TV Record, um evento que se passa dois anos antes dos relatos de Caetano Veloso sobre sua prisão pela ditadura civil-militar, em 1969.
Para contar aquela noite em 1967, quando acontece a histórica edição do evento musical, que também tem participação de Veloso, os diretores optaram pela abundância, entre imagens de arquivos e entrevistas cronologicamente distanciadas.
Em Narciso em Férias, foi tomada uma direção oposta, mais enxuta e menos convencionalista. Há apenas Caetano, um banco e uma parede cinza, vez ou outra segurando um violão ou papéis, enquanto narra os acontecimentos que se sucederam: desde as horas anteriores às autoridades baterem em sua porta e o levarem de São Paulo para o Rio de Janeiro até sua soltura na Bahia.
Em seu relato para a câmera, ele fala sobre como foi tirado de casa para um interrogatório que se tornou um inferno de dois meses. Os primeiros dias de solitária já começaram a lhe roubar coisas além de sua presença no mundo. O tesão foi um dos primeiros, num processo que ele define como "deserotizador". Não tardou para que perdesse, também, a percepção de si mesmo. Seu "eu" do espelho tornou-se uma memória distante, uma imagem que só reencontraria em seu retorno para a casa dos pai. Não mais a reconhecia como antes da prisão.
Lá dentro, conseguia ancorar sua presença aos poucos. Lendo jornais que forravam o chão, cantando para um vizinho de solitária, recebendo livros de conhecidos encarcerados, como o editor Ênio Silveira. Mais uma vez, a palavra foi uma amiga. Mas também foi terror, quando proclamada por um soldado que apontava um fuzil, ordenando seu caminhar para frente sem olhar para trás. Chegou a achar que ia morrer em uma dessas, mas ganhou um corte de cabelo.
A força de Narciso em Férias está, justamente, no verbo narrar, que ganha força com a capacidade de Caetano em articular a memória como força de registro e de poética.
ABORDAGEM
A abordagem minimalista dos diretores é mais do que uma aproximação das escolas de documentários vistas sob o signo do contemporâneo. É um gesto de reverência ao manejo de Veloso com a palavra. Uma atitude que se arrisca quando entrega significativamente sua unidade nas mãos do entrevistado. Mas, de forma geral, a estrutura não é comprometida com o falar de Caetano, mestre em gerar interesse e imersão.
O relato não é amparado pela intensidade do horror em si. Sem diminuir a percepção do sofrimento pelo qual Caetano passou durante período, tais horrores aqui aparentam situações mais brandas, na falta de uma palavra melhor, quando comparadas às de outros protagonistas que foram torturados, morreram ou "desapareceram".
Caetano faz suas articulações em um leque de instâncias discursivas, sempre garantindo intensidade, reforçada pela sinceridade na forma em que tudo é explicitado. Assim, ele passa pelo relato factual, mas também pelos devaneios, elaborações poéticas da angústia e pela própria música.
E, dentro desse fluxo, cabe à montagem abraçar seu ritmo e fazer pequenas incisões na imagem, ora diminuindo o músico perante o muro cinza, ora focando-o de perto, assim como o abraço às pausas.
MUDANÇAS
Levando em conta a janela entre a produção do filme, em especial seu período de filmagens, uma mudança de posicionamento do protagonista de Narciso em Férias acabou gerando uma repercussão que, em um certo nível, leva um outro olhar para o filme. Há de se pensar em como as coisas mudam em tão pouco tempo. E este é um dos fascínios do cinema documentário, ganhando novos contornos com a experiência veloz das redes sociais.
Em entrevista ao programa Conversa com Bial, Veloso declarou que não concorda mais tanto com o Veloso de antes em relação às experiências de governos socialistas. "Hoje, eu tendo mais a respeitá-los (estados socialistas) pelo menos, eu mudei, sou menos liberaloide do que eu era", declarou.
Ele relata ter feito uma "revisão da história do liberalismo", com a qual teve contato por meio do historiador, professor e pesquisador pernambucano Jones Manoel, que lhe indicou a obra do historiador e filósofo italiano Domenico Losurdo.
"Eu sou outra pessoa, não esse rapaz que falou dois anos atrás (...) quando ouço pessoas como você (Bial) e outras, e leio 'o comunismo e o nazismo são igualmente horríveis, são autoritarismo, essa equalização das experiências socialistas com o nazismo, eu não engulo mais como eu engolia, não acho mais", afirmou na entrevista.
A fala de Caetano reverberou nas redes sociais, entre debates e ataques. Acusações de "stalinismo", que sobraram para o trio Veloso, Jones e Losurdo. Controvérsia que se desdobrou em braços que passam não só pela discussão política, mas também pela influência que a fala de Caetano tem e o poder da polêmica para impulsionamento de interesse em uma obra.
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