Dilema: duas premissas que se contradizem entre si, define o dicionário. A apresentação deste contexto conflituoso no cenário das redes sociais é a razão de ser do documentário O Dilema das Redes, em exibição na plataforma de streaming Netflix.
Dirigido por Jeff Orlowski, esta produção de 2019, que estreou no último dia 9, reúne um time de profissionais da tecnologia e pesquisadores que se debruçam sobre o impacto que as redes sociais terão sobre a humanidade, tal como a (re)conhecemos até este ponto.
Ao destrinchar o modelo de negócios hoje praticado por empresas como Facebook, Twitter, Instagram, Pinterest, Snapchat e outras, mais ou menos utilizadas, Tristan Harris, fundador do Center for Humane Technology e ex-funcionário do Google, onde estudou a ética da persuasão humana, é taxativo: "Uma ameaça à existência".
O trabalho de Harris, conhecido como "a coisa mais próxima que o Vale do Silício pode chamar de consciência", tem consistido em alertar, de forma nada suave, os perigos que se escondem por trás de algo hoje tão banal quanto uma curtida. No documentário, sua voz vem se juntar a muitas outras para fazer uma dissecção impiedosa de um comércio onde o produto somos nós mesmos ou, por outra, nossa atenção.
Como é possível conceber uma ferramenta que consegue, através do seu poder de mobilização, gerar campanhas humanitárias em larga escala como doação de órgãos e ajuda a países conflagrados por guerras e fome, na mesma medida,em que estimula grupos a disseminar o ódio?
Até que ponto conseguiremos, enquanto sociedade que quer evoluir, resistir ao poder devastador das notícias falsas, das bolhas anticiência, dos ataques cibernéticos, da pressão que a aceitação gera sobre a saúde mental de seus usuários? Isolamento social, necessidade doentia de agradar, autoestima em frangalhos, dismorfia e taxa de suicídio em elevação nunca antes registrada são alguns dos efeitos colaterais atribuídos ao modus operandi de empresas consideradas "as mais ricas de toda a história da humanidade". Eis o dilema proposto.
Um dos entrevistados, Jaron Lenier, músico e cientista da computação, um dos maiores especialistas em realidade virtual no mundo, não hesita em fornecer uma lista de razões pelas quais as pessoas deveriam abandonar as redes sociais em debandada. Sendo a mais forte delas a alma do negócio: manter o usuário conectado o maior tempo possível, uma vez que os anunciantes pagam pela certeza de encontrá-los ali. Para que isso aconteça, o meio utilizado é a manipulação através de dados fornecidos pelo próprio usuário, ao mesmo tempo consumidor e produto.
É o que Shoshana Zuboff, uma das primeiras mulheres a ser professora titular na Harvard Business School, Ph.D. em psicologia social, chama de "capitalismo de inteligência" ou "o comércio do futuro da humanidade em larga escala".
Quem está do outro lado da tela é monitorado o tempo todo, e o quanto dura esse tempo de engajamento. Como bem define um dos entrevistados, é como se fosse criado um avatar-vodu movido por gatilhos que despertam emoção. O objetivo é compilar informações sobre seus gostos de modo a reforçar a sincronicidade entre o que é apreciado e o que aparece diante de seus olhos, no feed, na sua linha do tempo.
Quanto mais se curte, mais a inteligência artificial lhe conhece. Quanto mais tempo se demora numa postagem, mais postagens similares aparecerão: engajamento crescimento = distribuição adequada de anúncios. De maneira que, se você é um terraplanista, antivacinista ou um supremacista branco, desaparecerão de sua bolhas opiniões contraditórias.
As fakenews se espalham seis vezes mais rápido do que as verdades. "Truth is boring" ("a verdade é chata"), diz um dos entrevistados. Informações falsas geram mais dinheiro, assim como o sensacionalismo desperta mais atenção. Este é o resumo da ópera, vista muito claramente nas últimas eleições em todo o mundo. O Brasil é citado como exemplo, numa cena estarrecedora: um trio elétrico abarrotado de militantes bolsonaristas berrando: "Facebook, Facebook". Emblemático.
Em paralelo ao documentário, transcorre uma trama ficcional, retratando uma família às voltas com o uso dos seus smartphones: a filha mais velha consciente dos riscos envolvidos na codependência, o filho que não consegue resistir 24 horas sem consultar o aparelho, a filha caçula que desmonta após postar uma selfie e se deparar com um comentário sobre suas "orelhas grandes".
O fator aditivo das redes sociais é ponto crucial no discurso de cada um dos depoentes no documentário. Tim Kendall, ex-CEO do Pinterest, confessou seu próprio assombro e incapacidade de se separar do smartphone ao chegar em casa. "Só há duas formas: a força de vontade ou a força bruta", garante. "É assustador".
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