Na Inglaterra de 1884, ainda sob a era vitoriana, representantes da tradição já sentiam os ventos da mudança nas questões tecnológicas, mas, principalmente, nos anseios da população por transformações nas estruturas excludentes e arcaicas. Nesse cenário, a jovem Enola Holmes (Millie Bobby Brown) completa 16 anos em meio a esse embate ideológico e, com sua coragem e inteligência, se tornará peça fundamental de uma trama que envolve mistério e política.
O sobrenome da personagem é rapidamente associado a um dos personagens mais conhecidos da literatura ocidental: Enola é a caçula de Sherlock (Henry Cavill). A jovem não existe no cânone criado por Sir Arthur Conan Doyle, mas tem seus próprios livros escritos por Nancy Springer, que se utiliza de elementos e criações da série de mistério, a exemplo do outro irmão do detetive, Mycroft (interpretado por Sam Claflin).
Na trama, Enola é educada sozinha por sua mãe, Eudoria (Helena Bonham Carter), isoladas na mansão da família que funciona como uma espécie de utopia feminista. Lá, a jovem é estimulada a exercer sua independência, o intelecto e habilidades físicas, inclusive com aulas de luta. Ou seja, o oposto do que se permitia às mulheres na época, quando a elas eram designados papéis muito delimitados na sociedade: os de cuidadoras do lar.
Quando na manhã do seu aniversário de 16 anos Enola percebe que sua mãe sumiu sem, aparentemente, deixar rastros, seus irmãos reaparecem após décadas. O choque é imediato: Mycroft é um típico representante da aristocracia britânica e não se conforma com a personalidade da irmã. Como seu tutor, decide obrigá-la a ir para um colégio interno para se tornar uma "lady".
Sherlock é igualmente distante e, apesar de ter a admiração de Enola por seus feitos como detetive, também não está disposto a abrir mão de seus privilégios em favor da caçula.
Ao descobrir uma possível pista sobre o paradeiro da mãe - e para escapar do destino que os irmãos traçaram para ela -, Enola foge em direção a Londres e, no caminho, ajuda a salvar a vida de um jovem lorde, o marquês Tewkesbury (Louis Partridge). Esse encontro se mostra emblemático para a jovem, que pela primeira vez convive com alguém da sua idade e também descobre novos sentimentos, como a amizade e a paixão.
Mas, não é no romance que o filme dirigido por Harry Bradbeer se foca. A obra foca em Enola e seu crescimento, sua autodescoberta enquanto mulher em uma sociedade que lhe nega o direito de ser independente. A luta da emancipação da mulher e da aquisição de direitos das minorias, representadas também pelo silenciamento que os irmãos mais velhos tentam lhe impor e impuseram à sua mãe, é também força motriz do longa.
Enola utiliza seus conhecimentos e sua astúcia para sobreviver em um mundo desenhado para lhe oprimir. Segue sua intuição e não se furta de se desviar das rotas para ajudar o próximo. Para proteger Tewkesbury, ela começa a investigar quem estaria por trás das tentativas de assassinato do marquês e por qual razão. Com o mesmo poder de observação do irmão Sherlock, ela conta com a vantagem de ser espontânea e se arriscar, ao contrário do irmão, que adotou o cinismo e a frieza como modus operandi.
Millie Bobby Brown consegue se desvencilhar do papel de Eleven, de Stranger Things, e entrega uma personagem carismática, capaz de sustentar o filme em cenas que envolvem ação, humor e drama. A atriz de 16 anos também é uma das produtoras do longa, que tem potencial para ganhar derivados graças à boa repercussão que tem conseguido junto à crítica e o público.
A direção é dinâmica e se utiliza da quebra da quarta parede para estreitar os laços da protagonista com o espectador, um recurso que Harry soube conduzir com maestria em Fleabag, série criada e estrelada por Phoebe Waller-Bridge. Com foco na necessidade de se lutar contra o conservadorismo e os preconceitos, sem, no entanto, soar panfletária e abrir mão do entretenimento, Enola Holmes consegue apresentar uma heroína que, apesar de viver no século 19, incorpora os anseios da sociedade contemporânea.
Polêmica
Apesar do sucesso junto ao público, Enola Holmes está no centro de uma polêmica. A família de Sr. Arthur Conan Doyle está processando a Netflix, a escritora Nancy Springer, a editora Penguin Random House e a produtora Lendary Pictures por alegar que elas violaram os direitos autorais do escritor.
Apesar de a maior parte da obra do escritor britânico estar em domínio público, o personagem apresentado pelo filme e pelos livros, com o detetive mais humanizado e focado em questões familiares, faz parte da última leva de livros do britânico, produzida na década de 1920, ou seja, ainda fora do escopo das livres adaptações.
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