O ano era 1944 e um jovem autor pernambucano, Valença Leal, que até então só havia publicado contos e poemas em revista e suplementos literários, lançava seu primeiro livro. Mas Cruz de Carne marcou não somente sua estreia no romance como também sua despedida. Aliás, Valença Leal só publicou um único outro livro em vida, o volume de contos Os Humildes, em 1994, aos 81 anos, cinco décadas depois.
Um hiato que parece ser dificilmente justificado do ponto de vista literário, haja visto o burburinho que se criou em torno de Cruz de Carne à época. Meses após seu lançamento, ele ficou em 10° lugar no concurso O Romance do Ano, promovido pela Folha Carioca, em que Perto do Coração Selvagem (Clarice Lispector), Terras do Sem Fim (Jorge Amado) e Fogo Morto (José Lins do Rêgo) ficaram, respectivamente, com os três primeiros lugares.
Não fosse pela iniciativa do jornalista Homero Fonseca e pela receptividade da Cepe, a história deste pernambucano de Quipapá e de sua produção literária permaneceria pouco conhecida até essa semana. Mais de 70 anos depois, o romance ganha uma reedição que é lançada nesta quinta-feira (8), dentro da programação do Circuito Cultural Digital de Pernambuco. Às 19h, através do canal do YouTube do evento, o editor da Cepe, Diogo Guedes, conversa com o autor da apresentação do livro, Homero Fonseca, e com a filha de Valença, Gerusa Leal. No momento o livro está disponível apenas no formato e-book (300 pgs., R$ 13,50).
É curiosa a forma como o livro chegou até a Cepe. Homero Fonseca encontrou Os Humildes, segundo e último livro de Valença Leal, em um escambo da Secult-PE, em 2015, mesmo desconhecendo o autor. "Valeu a pena", relata. "Uma dessas obras que redespertam o prazer de ler, tão relegado hoje por uma teoria literária aristocratizante. A leitura do livrinho atiçou a curiosidade: quem seria Valença Leal? Na internet, descobri pouca coisa: o pernambucano é autor de obra reduzida." Ele então se dedicou a pesquisar informações sobre a vida e obra do escritor e conseguiu estabelecer contato com Gerusa Leal e descobriu o primeiro livro de Valença.
Romance de formação, Cruz de Carne conta a história de Inácio desde sua infância numa fazenda da Mata Sul do Estado até seus 20 e tantos anos. Narrado em primeira pessoa, o livro é ambientado entre as duas primeiras décadas do século 20 e tem como ponto de partida a paixão do protagonista pela sua prima Mariana. Até cerca de um terço do livro são contadas episódios marcantes da meninez e da adolescência assim como fatos rotineiros do dia a dia da Fazenda Alvorada e do engenho vizinho, pertencente à tia paterna.
As brincadeiras com os irmãos e a convivência com as outras crianças na escola têm como pano de fundo um Brasil rural marcado pelo racismo escancarado - em determinados momentos compactuado por Inácio de forma estrutural - e pelo descompasso cultural em relação às capitais. Mas é também através deste panorama que o livro se revela, além de uma boa ficção, um documento histórico dos hábitos, do vocabulário, das vestimentas, da gastronomia daqueles anos.
Há um salto temporal entre o nono e décimo capítulo justificado de tal forma pelo narrador: "Passarei ao largo de alguns anos de minha vida entre a infância e a juventude, ou antes, resumirei todos os acontecimentos desse espaço de tempo numa única palavra: idem. E abicarei em idade mais interessante. Tenho 22 anos." Apesar do avanço cronológico, os sentimentos de Inácio para com a Mariana não diminuíram e são eles que vão provocar uma série de acontecimentos que irão subverter a lógica de tranquilidade rural, quase bucólica, até então predominante.
São claras as referências à escrita machadiana na forma como Valença Leal conduz a narrativa, seu humor e até a dinâmica entre alguns personagens. É de se imaginar que, para um jovem autor estreante da década de 1940, Machado de Assis fosse um modelo. O autor carioca é inclusive citado de forma direta em determinado diálogos - as conversas entre os personagens, principalmente as corriqueiras, são, inclusive, um dos pontos altos do romance.
"É um romance de costumes, que brinca com o próprio contexto em que se insere a partir do personagem narrador. Tem esse lado irônico e humorístico acentuado ao mesmo tempo em que retrata a vivência de um Pernambuco interiorano, de suas figuras do engenho e das relações sociais", pontua o editor Diogo Guedes.
A leitura flui, diverte mas também provoca em relação a questões raciais e de gênero. Algumas passagens hoje seriam dificilmente publicáveis e cabe ao leitor se questionar se era uma defesa ou uma crítica de Valença Leal às ideias predominante de um Brasil recém-saído da escravidão. Homero Fonseca, na apresentação do livro, defende que julgar essas passagens a partir do conhecimento que se tem hoje seria anacronismo, ao mesmo tempo em que aponta para a necessidade de separar o autor do personagem, "o que um fala não deve ser confundido com o que o outro pensa."
Mas como distinguir autor da obra quando este já morreu há 20 anos e não é de conhecimento público sua produção literária ou jornalística a respeito de tais temas? É necessário, sim, denunciar essas questões e realizar a leitura de forma crítica, atendo-se a todas as nuances - inclusive as do nosso tempo.
No processo de amadurecimento de Inácio, percebemos que ele se torna uma pessoa empática e menos caprichosa do que na infância. A saída da casa familiar para a cidade de Quipapá, o trabalho no armazém do padrinho e a convivência com os outros moradores da pensão foram benéficas para Inácio, um personagem dotado de uma complexidade interessante de acompanhar.
Para Diogo, essa análise dos trechos em que as temáticas de classe, raça e gênero são postas no romance parte também dos processos de cada leitor. "É um tema difícil mas não devemos omiti-lo. Ler criticamente um livro é também ler criticamente a sociedade."
Comentários