Em certo momento, Héctor Babenco, falecido em 2016, diz que os brasileiros o consideram argentino e os argentinos vice-versa. As línguas de sua filmografia passam pelo carioquês de Marília Pêra ao inglês de Meryl Streep. Se de alguma forma Babenco talvez pudesse se sentir um perpétuo estrangeiro, sua obra já deixava claro que o fazer cinema era sua grande âncora do estar no mundo e se perpetuar nele. E essa ideia ganha um grande reforço com o lançamento, nesta quinta-feira, de Babenco: Alguém Tem que Ouvir o Coração e Dizer Parou, com direção íntima e poderosa de Bárbara Paz.
O longa é o escolhido para representar o Brasil na categoria de melhor filme internacional do Oscar 2021, sendo a primeira vez que um documentário é selecionado para tentar a vaga. Em sua bagagem antes da estreia oficial no país, já conta com o prêmio de melhor documentário pela crítica do prestigiado Festival de Veneza. Paz vai além de um registro didático da vida do diretor e costura uma teia de impressões de estados de espírito e reflexões do cineasta, incluindo a consciência de que ali estavam sendo tomadas memórias cinematográficas de sua iminente morte. Ela o faz por meio de imagens poéticas, conversas, bastidores - da vida privada e profissional - e cenas de sua filmografia.
"É um filme que eu tinha que registrar aquilo naquela hora, naquele momento. Algo que nasceu de uma urgência, mesmo que não houvesse mais tempo de registrar esse homem, esse pensador, essa vontade dele em se perpetuar vivo. Foi tudo um complemento junto, a gente foi muito parceiro. Eu quis fazer um documentário e ele também ficou muita vontade, com medo de que não tivesse mais tempo de deixar isso”, conta Bárbara, em entrevista ao Jornal do Commercio por telefone.
Sobre esse ímpeto de trazer esse resgistro, ela lembra que quando Héctor descobriu que seu câncer havia voltado e decidiu que ia filmar seu último filme, O Amigo Hindu (protagonizado por Willem Dafoe), pediu para que Bárbara, sua esposa, filmasse os bastidores e que a câmera do documentário estivesse lá. A cumplicidade entre Babenco e Paz talvez seja o grande possibilitador da força que o filme tem. Babenco com o diretor se entregando para a proposta da diretora, que por sua vez se permite se soltar de amarras do documentário convencional para se aprofundar em impressões de momentos, como a dor do presente e da possível partida, mas também a beleza a qual teve acesso por meio da vida e da arte.
O filme acaba sendo sobre um cineasta, um homem, mas também sobre uma relação que deixa as impressões do afeto nas imagens e sons deste documentário. Uma proximidade que acabou sendo traduzida em liberdade estética na produção, que se permite ir e vir pelo tempo de Babenco, fazer analogias entre sua vida e cenas de sua obra e extrair força de momentos banais.
“Eu sempre quis fazer um poema visual, porque ele gostava muito do meu olhar fotográfico. Falei que ia fazer um filme em preto e branco, fiz um teaser e mostrei pra ele, ele amou. Não queria um documentário convencional ou uma cinebiografia, qualquer um pode fazer sobre o cineasta. Eu queria um filme sobre o homem, sobre o pensador, surgindo a vontade de fazer um filme de memória. Só que acabou sendo um filme de despedida, além de memória. Não era a ideia de fazer só sobre o fim, mas queria falado por ele, contando sobre vida dele”, relata Paz.
Para a diretora, trata-se de um filme que mostra quem é Babenco para o cinema nacional e mundial, mas que parte de um agora para fazer esse olhar retrospecto. “É uma dor do presente, mas que também traz a beleza de viver, um homem que amou a vida que teve. E viveu para fazer filmes e sobreviver”, afirma. Nessa experiência, ela acaba fazendo a imagem e o som respirar o seu olhar que tinha pelo amigo e companheiro. As músicas da trilha, por exemplo, são músicas pelas quais tinha carinho e revelam muito sobre eles.
A abertura e encerramento, por exemplo, ficam com Exit Music (For a Film), da britânica Radiohead, que tinha alguns membros próximos do casal e cederam a música para o filme. Se Babenco era um homem apaixonado pela música clássica, também encontrava espaço em seus gostos para o rock alternativo da banda britânica. "Quis colocar tudo que ele gostava de escutar, porque ele é o filme. O cheiro dele, o jeito dele falar, o mau-humor, o filósofo, o gosto musical. Quis fazer um retrato do que eu enxergava desse homem", conclui.
Comentários