Já é sabido que o panteão do se pode chamar de uma mitologia do cinema, entre figuras e obras, certamente reserva um imenso espaço para o diretor Orson Welles e seu fundamental Cidadão Kane, lançado em 1941. Trata-se de um dos principais pontos de virada na história da linguagem cinematográfica, em uma obra pela qual teóricos e críticos do mundo se debruçaram sobre, dos lendários artigos de André Bazin ao ensaio de Pauline Kael repensando sua verdadeira autoria, sempre passando pelas inovações técnicas e estilísticas que contribuíram para o surgimento de novos cinemas.
Eis que quase 80 anos depois, um outro grande cineasta norte-americano, David Fincher, lhe rende algo perto de uma homenagem, mas que não é exclusivamente uma. Mank, estreando nesta sexta-feira na Netflix, revisita os bastidores da criação não de Cidadão Kane, mas da construção do drama que lhe originou, no roteiro escrito por Herman Mankiewicz a pedido de Welles. Mas o interesse de Fincher se encontra em múltiplas camadas, não se esgotando no resgate histórico ou na emulação da estética de Welles ou da Hollywood dos anos 1940. É o próprio gesto da estilização permitindo simular uma atmosfera clássica a partir da tecnologia que torna a obra uma homenagem que vai além da simples referenciação.
Acompanhamos a história de Herman (Gary Oldman) em dois momentos. O primeiro, no presente de 1939, é com o experiente roteirista acamado, após sofrer um acidente de carro e comprometido em escrever um roteiro para o jovem cineasta Orson Welles, saindo da cena teatral de Nova York e cavando seu espaço na indústria cinematográfica. E sua escrita é impulsionada por suas memórias de alguns anos antes, mostradas em flashbacks. Trata-se de sua vida na boêmia em Hollywood, entre reuniões com roteiristas, a acolhida ao seu irmão mais novo, que viria a se tornar o grande cineasta Joseph L. Mankiewickz e, em especial, sua relação com o magnata da mídia William Randolph Hearst, principal inspiração para o Charles Foster Kane no roteiro que escreveu para Welles.
Uma história que caiu no colo certo, com Fincher mostrando constantemente em seu trabalho inclinações para um classicismo de sua mise-en-scène, mas a partir de configurações mais contemporâneas de tecnologias e narrativas. Aqui, Fincher parte de uma mão pesada de estilização para simular uma encenação antiga e referenciadora ao cinema de Welles, mas que agora se destaca muito mais pelo gesto do que pelo resultado em si. Pois, se a imagem original de Kane obtida por Welles e o celebrado diretor de fotografia Gregg Toland partia de inovações e trucagens técnicas que a permitiram, Fincher faz o caminho oposto, usando a alta tecnologia para trazer um simulacro minucioso dessa imagem.
Então, sua homenagem não está essencialmente na imagem, mas nesse gesto de uso da tecnologia para recriar esse mundo wellesiano. O logo da Netflix, símbolo do streaming, por consequência das novas tecnologias que envolvem o cinema, remodelado como se fosse de um estúdio tradicional dos primeiros anos de Hollywood, é um bom indicativo dessa atitude de Fincher. E estamos falando de uma construção minuciosa desse simulacro clássico.
É o preto-e-branco, é o plano em profundidade com muito foco, é um tratamento do som com um certo abafamento, uma decupagem com movimentos elegantes e uma montagem rígida na análise dos espaços e na construção de um ritmo muito específico. E um outro elemento dessa recriação é a direção de atores que evoca uma postura de tom mais “teatral” da era de ouro, do tom de voz empostado aos gestos marcados. Uma forma de atuação que cai como uma luva para Gary Oldman, com uma larga experiência em personagens de posturas e trejeitos maneiristas. Mas sempre soando como um filme de 2020 que está conscientemente adotando essa postura a partir dos meios que dispõe.
O que acaba também entrando em um território dramático carregado de ambiguidade, pois ao mesmo tempo em que Mank lida com esse mundo hiper estilizado, ele é atravessado por uma trama em boa parte burocrática. É como se Fincher quisesse lidar com a materialidade do relato histórico ao mesmo tempo em que confere um ar mitológico que circunda a produção de Cidadão Kane. Muito se especulava se Fincher usaria o filme como um argumento sobre a real autoria do filme, levantada principalmente no ensaio de Kael, mas acaba que o interesse do diretor reside em um lugar mais afastado do debate e mais próximo de um clima.
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