'O Tigre Branco', da Netflix, lança olhar sobre as injustiças sociais
Filme mostra os efeitos da permanência do sistema de castas na Índia
Apesar das culturas distintas, a Índia e o Brasil guardam algumas semelhanças — entre elas, uma desigualdade social estruturante, que priva grande parte da população do mínimo para viver dignamente. Por isso, assistir ao filme O Tigre Branco é uma experiência que deve reverberar no espectador brasileiro. Uma produção original da Netflix, o longa constrói uma análise instigante sobre o capitalismo contemporâneo e a manutenção dos privilégios de classe, ancorado em um roteiro denso e em atuações vigorosas.
Adaptado do livro homônimo escrito por Aravind Adiga e vencedor do Man Booker de 2008, O Tigre Branco acompanha a trajetória de Balram Halwai (Adarsh Gourav), um jovem de uma comunidade rural da Índia, onde vive com sua numerosa família em uma situação de extrema pobreza. Inteligente e curioso, ele almeja transformar sua vida e vê na educação a forma de atingir seu objetivo.
Na infância, chega a ser selecionado para estudar em uma grande cidade, mas tem seus objetivos mudados com a morte de seu pai e a intervenção da avó tirana, por quem não nutre afeto. Um dia, ele vê a oportunidade de ascender socialmente tornando-se motorista de Ashok (Rajkummar Rao), filho de um poderoso empresário da região que extorque a população com recolhimento ilegal de impostos. Para isso, Balram aprende a dirigir e começa, pouco a pouco, a ultrapassar barreiras morais.
Ashok parece representar o oposto de seu corrupto pai: após uma temporada nos Estados Unidos, ele e sua esposa, Pinky (Priyanka Chopra Jonas, que também produz o filme) chegam à Índia com ideias de renovação; criticam as disparidades sociais e a forma desumana como são tratados os pobres. Como motorista do casal, Balram se submete a vários tipos de humilhação e pouco a pouco percebe que, apesar de colocarem no discurso o desejo por transformação, seus novos patrões são igualmente preconceituosos e incapazes de abrir mão de seus privilégios.
Narrado de forma não linear, O Tigre Branco nos apresenta o cenário da tragédia que irá dar tom ao filme logo nos primeiros minutos, mas não se apressa em construir todas as tensões que culminam nesse determinado fato. Ao narrar a trajetória de Balram e sua crescente autoconsciência das injustiças que afetam não só a ele, mas a maior parte da população indiana, o diretor Ramin Bahrani (também responsável pelo roteiro) tece também um comentário sobre a situação de vários países "em desenvolvimento".
O filme esmiúça a crueldade da concentração de renda e de como as benesses do crescimento econômico quase sempre se dão a partir do massacre físico e emocional da população, privada de dignidade e desestimulada a lutar por transformações em seu benefício e a derrubar os poderosos que a oprime. Balram se torna uma representação dos milhões de rostos e corpos descartáveis pelo capitalismo — questão que é brilhantemente tratada no filme.
O protagonista Adarsh Gourav brilha. Sua atuação é cheia de nuances e expressa de forma intensa a jornada emocional de Balram. Para se preparar para o papel, o ator, que desbancou vários astros de Bollywood, chegou a morar anonimamente em uma vila remota e trabalhou na limpeza de pratos, em uma jornada de 12 horas diárias. Com a competição acirrada deste ano, ele deve ficar de fora do Oscar, mas não deveria: sua performance é hipnotizante.
Um dos melhores lançamentos recentes da Netflix, O Tigre Branco oferece entretenimento e material para reflexão, em um misto de sentimentos que deve permanecer com o espectador muito após o término da sessão.