Isolado em casa por conta da pandemia da covid-19, Newton Moreno viajou. Mas, ao invés de malas, hotéis e guias de viagem, utilizou suas memórias e fabulações para criar narrativas a partir de espaços urbanos diversos, como o Recife e a Cidade do México. As histórias nascidas deste roteiro afetivo deram origem ao seu segundo livro de contos, Cidades Sensíveis (São Paulo Review Edições, 180 páginas, R$ 43,90), à venda a partir desta sexta-feira (12) no site do selo Folhas de Relva.
Conhecido por sua profícua carreira no teatro, Newton tem um particular interesse pelos contos e o potencial que as narrativas curtas podem oferecer. O desejo de retornar ao gênero (em 2016 lançou o livro Ópera e Outros Contos) inicialmente envolveria uma circulação por várias cidades, uma espécie de pesquisa etnográfica, que serviria de base para o desenvolvimento das histórias. Com a pandemia, a rota precisou ser reajustada.
"Impedido de ir a alguns locais que inicialmente tinha planejado conhecer, como a Cidade do México, optei por fabular sobre esses espaços e também utilizar minhas memórias para trabalhar em cima de locais que já me eram familiares. Até porque a ideia nunca foi escrever histórias sobre os lugares ou criar um retrato fiel daquelas culturas. A localização geográfica é mais uma moldura e também um trampolim para criar em cima de temas que são caros ao meu universo artística, como as questões LGBTQI e a religiosidade brasileira", explica o autor pernambucano.
Os contos do livro são divididos em duas partes: As Cidades com Deus, com narrativas atravessadas pela religiosidade, o mistério e o sagrado, e As Cidades Sem Deus, quando as narrativas não têm ligação com o misticismo. Na primeira, inserem-se cidades como Rio Branco, Salvador, Rio de Janeiro, Limoeiro e Guaratinguetá, enquanto na segunda surgem locais como Londres, Brasília, Curitiba e Tiradentes. Recife aparece em ambas.
Assim como já desenvolvia em seus trabalhos para os palcos, Newton constrói personagens complexos, marcados por contradições e atravessados pelas dinâmicas sociais e metafísicas. Há uma fina ironiza em suas palavras, um olhar atento à condição humana. As reflexões em torno da morte, do amor e do desejo se apresentam, ainda que muitas vezes cruas, de formas poéticas.
"Algumas dessas histórias já existiam antes da pandemia e outras surgiram justamente deste contexto de isolamento. Acho que, de alguma forma, a literatura foi um jeito que encontrei de me deslocar e passear pelo fundo, pelo passado, pelo planejado, o não realizado e o futuro. A escrita se apresentou como um lugar de vazão desse desejo e, em algum sentido, foi terapêutica", enfatiza.
LETRAS
A concisão exigida pelo conto exerce um fascínio em Newton Moreno, acostumado com as possibilidades mais abertas da dramaturgia. O autor, um apaixonado confesso pelo processo teatral, da escrita à sala de ensaio, percebe na criação literária uma forma, também, de desenvolver outros processos criativos que podem reverberar no teatro.
"Não considero esse caminho uma mudança de rota, porque no meu teatro há uma preocupação muito grande com a palavra, com o que vai para a boca do ator. Mas, no conto, não há nada que vá mediar a recepção do leitor em relação à história. No teatro, você tem os recursos cênicos, os atores, o próprio processo criativo é mais aberto, com a possibilidade de você mudar vários aspectos, mesmo depois de achar que o texto está pronto. Com o livro, são suas palavras e o leitor. E o ponto é de fato final, depois que vai para a gráfica (risos). Me interessa demais essa cumplicidade, a experiência mais intimista do leitor com esse texto. Fora que alguns acabam se tornando estudos para peças futuras", aponta.
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