"Eu entendi o espírito. É igual a estar na igreja, onde você é movido e remexido ao ponto em que consegue sentir [a energia] dentro de você", lembra Oprah Winfrey sobre quando viu Tina Turner se apresentar pela primeira vez. O magnestismo sentido pela apresentadora e empresária foi compartilhado por milhões de pessoas ao redor do mundo. Em sua longeva carreira, a cantora estadunidense arrastou multidões em seus shows enérgicos e lançou canções que se tornaram clássicos, como Proud Mary e What's Love Got To Do With It. Sua trajetória, marcada por altos e baixos e, principalmente, resiliência, inspirou gerações, e agora é contada pela própria, no recém-lançado documentárioda HBO intitulado Tina.
Disponível no streaming dos EUA, mas ainda sem data de exibição no Brasil, o filme dirigido por Dan Lindsay e T. J. Martin reúne imagens preciosas de acervo, muitos depoimentos, mas, principalmente, chama a atenção pelas entrevistas exclusivas com a cantora. Aos 81 anos, Tina (nome artístico de Anna Mae Bullock) vive há mais de duas décadas na Suíça, país que adotou como seu, abrindo mão, inclusive, de sua cidadania estadunidense. Suas aparições públicas são cada vez mais raras desde 2009, quando se aposentou após realizar uma das turnês mais bem-sucedidas da história.
Sob os holofotes desde a década de 1960, a história da estrela não é desconhecida. Pelo contrário: a fama, o relacionamento abusivo com o ex-marido, Ike Turner, o ostracismo e, posteriormente, o retorno ao topo das paradas, já foi abordado por filmes, livros, reportagens especiais, entre outros vários produtos que se debruçaram sobre a biografia de Tina. O grande diferencial desta obra é, portanto, ouvir da própria artista sua versão dos fatos e ter uma perspectiva de como ela se encontra hoje em dia.
Seguindo uma estrutura narrativa clássica, entrecortada por depoimentos e imagens de arquivo, o documentário consegue capturar a essência do talento de Tina, artista que influenciou nomes como Beyoncé, Joan Jett, Janis Joplin, Janelle Monae, entre muitos outros. Suas performances eram cheias de energia, com dança e sua voz poderosa, que conseguia embutir nas músicas o espírito da música soul, do gospel, do blues e do rock de forma única.
O início da carreira, do canto na igreja ao envolvimento com Ike Turner, muda o rumo da vida de Tina. Talentoso, Ike era conhecido como um grande instrumentista e considerado um dos pais do rock & roll. O início do relacionamento foi marcado por uma grande paixão da parte dela, aos poucos massacrada por uma rotina de abusos verbais, físicos e sexuais sofridos por ela.
O inferno vivido em casa, que ela lembra como um constante estado de tortura, contrastava com o sucesso na carreira. Cada vez mais famosa, ela lotava casas de show, o que começa a chamar a atenção de outros artistas e empresários e provoca a ira de Ike, cada vez mais ciumento e paranoico com a atenção recebida por Tina. A vida na estrada era massacrante: Tina passava cerca de oito meses em turnê e apenas quatro em casa.
Seus filhos eram sua maior alegria, como aponta Craig, seu primogênito, falecido em 2018, em um dos depoimentos resgatados pelo filme. "Todo mundo ao redor da minha mãe estava sempre feliz - e ela estava sempre triste. Ela só ficava feliz com a gente ou quando estava sozinha no quarto. Ela nunca teve amigos, pessoas em quem pudesse confiar. Então, basicamente, sua felicidade era conosco e no tempo sozinha no quarto dela... Ele [Ike] tinha que saber onde ela estava o tempo todo. Ela ganhava uma mesada, não tinha seu próprio dinheiro. Sua vida era do estúdio para casa."
O filme resgata também os traumas de abuso que Tina presenciou na infância. Os pais tinham brigas violentas constantes - e um dia sua mãe simplesmente fugiu, ação que posteriormente foi imitada pelo pai, deixando as crianças aos cuidados de uma prima. O trauma, lembra a cantora no documentário, foi profundo.
Ao longo de quase duas horas, o público tem acesso ao processo de empoderamento da cantora, compartilha sua dor, torce por sua luta pelo direito de ser feliz. Ela teve que batalhar inclusive por seu nome artístico, inventado por Ike, mas forjado por seu próprio suor. Começa, então, a batalha por construir sua identidade desvinculada do ex-companheiro. O caminho é árduo, mas triunfante.
O sonho de ser a primeira mulher negra a lotar estádios "como os Rolling Stones", como ela mesma diz, se concretizou. Tina se tornou um símbolo de resistência e de superação. Seu estilo de apresentação, suas roupas, maquiagem, cabelo: ela se tornou uma criação de si mesma, afinal.
Por muito tempo, a artista que reuniu milhões de pessoas em estádios ao redor do mundo, que é uma das maiores vendedoras de álbum da história, sentiu que seu sucesso não era merecido. Nem que merecia afeto. "O amor não me foi ensinado", afirma Tina em determinado momento. Em um relacionamento com Erwin Bach desde 1986, hoje ela tem uma vida tranquila e, diz, feliz. O documentário é encarado como um fechamento, a possibilidade de, mais uma vez, lembrar ao mundo quem é Tina Turner - e a mulher complexa que está por trás da estrela do rock.
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