Cinema

Grande vencedor do Oscar 2021, 'Nomadland' expõe realidade de milhões de pessoas nos EUA

Longa de Chloé Zhao tem performance inesquecível de Frances McDormand

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Márcio Bastos

Publicado em 28/04/2021 às 11:28
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A aclamação de Nomadland no 93º Oscar, realizado domingo (25), com três das seis estatuetas às
quais concorria, consolidou a discreta, mas potente, trajetória do longa-metragem, que chamou a atenção da crítica e do público por seu retrato honesto e delicado de um fenômeno contemporâneo nos
EUA. Por falta de opção ou por escolha desse estilo de vida, milhões de pessoas vivem sem endereço fixo, habitando em seus carros e sobrevivendo com empregos temporários em diferentes estados.

O filme dirigido pela chinesa Chloé Zhao, que se tornou apenas a segunda mulher a vencer a categoria de
Melhor Direção, acompanha Fern (Frances McDormand), uma ex-professora de 60 anos que perdeu seu emprego e sua casa após a fábrica que movimentava a economia de sua cidade fechar. Ela passa a executar trabalhos de poucas semanas ou meses, migrando sempre que o período de atividades expira.

O longa trabalha de forma lenta e silenciosa a construção desse universo dos nômades contemporâneos. Em um diálogo com uma ex-aluna, ela explica sua situação e diz que não é uma sem teto, ela apenas não tem uma casa. Essa diferenciação é importante para entender alguns pontos que o filme desenvolve.

Afetados pela crise que atingiu o mundo em 2008 e começou nos EUA, com as especulações no mercado imobiliário, muitos desses personagens retratados são vítimas de um sistema cruel, que não oferece condições dignas para que todos possam ter casa, comida e educação. Mas, também há uma outra camada importante no longa: não aderir ao modelo tradicional, de passar a vida investindo na compra de um imóvel, pode ser uma escolha.

Alguns dos personagens retratados no filme (interpretados por não atores, uma característica do trabalho de Zhao), optaram pelo cotidiano na estrada. Essa constatação provoca reflexões profundas sobre a construção do nosso imaginário em torno da casa e da segurança de um lar. Fern não está desamparada no mundo: ao longo do filme, há opções de ter um teto sólido para habitar, ou mesmo de compartilhar sua vida — seja adotando um animal ou se permitindo viver outro amor. Seu processo, no entanto, não é convencional, e esse é um dos grandes trunfos de Nomadland.

Com uma atuação marcada por nuances — que lhe rendeu, merecidamente, seu terceiro Oscar de Melhor Atriz —, Frances McDormand constrói uma personagem complexa, cujas ações surpreendem constantemente o espectador, ainda que façam completo sentido dentro de sua trajetória. A morte do marido e a perda da casa parecem ter deixado mais claro para Fern a fragilidade de tudo que consideramos sólido.

Esse trajeto da ex-professora é marcado por encontros tocantes com personagens que, mesmo com pouco tempo de tela, conseguem emocionar. Há algo de profundamente íntimo na construção desse universo, sem procurar tecer qualquer tipo de julgamento das pessoas retratadas no filme. A fotografia do longa-metragem é impressionante e ajuda a construir metáforas sobre o tempo, pertencimento, transitoriedade, entre outros temas complexos. Tudo isso sem soar didático.

No entanto, um ponto do filme tornado alvo de críticas nos Estados Unidos foi a suposta ausência de uma crítica mais incisiva ao capitalismo contemporâneo. Um ponto que incomodou uma parcela dos críticos e do público foi o retrato do período em que Fern trabalha em um galpão da Amazon. A empresa é acusada de não prover condições de trabalho adequadas aos seus funcionários, o que não é mostrado no filme.

Apesar de compreensível, a crítica deixa escapar as sutilezas do roteiro. Muitas vezes, não é preciso mostrar situações extremas para que se consiga criar um quadro honesto sobre um assunto. Nesse caso, certas dinâmicas, como ver pessoas idosas trabalhando em atividades como limpar banheiros e fritar batatas fritas, sem perspectiva de poderem parar, quando deveriam poder se aposentar e ter uma renda digna, têm um impacto indelével.

Há um simbolismo forte na ideia da estrada como espaço de crescimento e autoconhecimento — e os Estados Unidos têm tradição em retratar esse tipo de narrativa. Nomadland contribui para o gênero “road movie”, mas não se limita a ele. O trabalho é um poderoso drama sobre como o ambiente político atua sobre nossas vidas, mas também sobre como também há outras formas de existir, com a solidão, às vezes, não sendo uma condição, e sim uma escolha.

HISTÓRICO

A vitória de Chloé Zhao em Melhor Direção evidenciou a falta de diversidade que ainda reina em Hollywood. Além de ser a segunda mulher a levar a estatueta, ela é a primeira não branca a ter seu trabalho reconhecido. Nascida em Pequim, Zhao já foi contratada para dirigir o filme de super-herói Os Eternos, da Marvel, com Angelina Jolie e Kit Harington.

Na China, porém, seus louros não estão sendo celebrados. Após vídeos antigos em que ela aparece criticando o país, seu nome tem desaparecido de redes sociais como Weibo, considerada o Twitter chinês. Suas conquistas também não têm sido reportadas pela imprensa oficial, segundo informações divulgadas pela AFP. Nomadland, inclusive, teve sua estreia adiada na China.

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