MÚSICA

O Nordeste e o streaming: como a região se tornou o novo centro musical brasileiro?

A região ganhou impulso com os negócios que surgiram a partir das plataformas de streaming no Brasil, competindo com São Paulo, Rio de Janeiro e o Centro-Oeste

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Bruno Vinicius, Emannuel Bento

Publicado em 27/01/2022 às 13:59 | Atualizado em 02/02/2022 às 20:38
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Definir o que é música pop no Brasil abre uma série de debates em torno do que é mainstream em um país complexo, composto por cinco regiões distintas e mais de 200 milhões de habitantes. Havia quase uma unanimidade, no entanto, que há 20 anos o Nordeste não estava enquadrado nessa categoria “pop”. Apesar da explosão das bandas de forró eletrônico, do brega e outros ritmos que fazem a cultura popular da região - inclusive difundidos nos meios de comunicação considerados nacionais -, as músicas feitas nos nove estados nordestinos eram considerados “regionais”. Mas, duas décadas depois, o que faz João Gomes, um cantor pernambucano de apenas 19 anos, ser a nova estrela da música pop nacional? E o piseiro, pagode baiano e o brega-funk serem elementos fundamentais em qualquer música que atinja as primeiras colocações nas paradas das mais ouvidas?

Não é coincidência que esses questionamentos tenham surgido após o crescimento do streaming no mercado musical brasileiro. É o que mostra o relatório "O que o Brasil ouve", do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad), apontando que houve um crescimento de 945% na distribuição de valores de músicas aos artistas em apenas cinco anos. A queda na pirataria de CDs e downloads ilegais e a chegada das plataformas de streaming ao País, possibilitando acesso fácil com smartphones e aparelhos digitais, são alguns dos motivos para o crescimento do setor nacionalmente.

E neste ponto que entra o Nordeste. Apesar de ser uma região tradicionalmente com artistas populares, tendo destaques nacionalmente durante as últimas décadas, o local virou a chave com o desenvolvimento do streaming. Não apenas como um local de grande produção de hits, como também tendo suas próprias distribuidoras e editoras, criando um mercado de música competitivo ao sertanejo, no centro-oeste, e ao funk/pop, no Rio de Janeiro e São Paulo. Esses, inclusive, têm explorado as parcerias com produtoras nordestinas como uma forma de criar uma rede de música pop para além do regional.

Isso reflete nas músicas mais ouvidas na era do streaming. No ano passado, por exemplo, o Ecad mostrou que três das cinco músicas mais ouvidas no País incluíam artistas ou gêneros populares na região. O relatório coletou dados das plataformas Amazon Music, Apple Music e Beats, Deezer, Spotify, Google Play Music, Napster e YouTube - as mais populares do País. "Ele é Ele, Eu Sou Eu", de Wesley Safadão e Barões da Pisadinha, foi a canção mais executada do ano, levando em consideração apenas as plataformas digitais - que hoje também incluem o TikTok e Instagram como reprodutoras de áudio. A lista ainda conta com "Só Você", do baiano Leo Santana, e "Esquema Preferido", também dos Barões da Pisadinha.

Surgimento do brega-funk

Apesar do piseiro criar um núcleo importante para a música na região, não dá para ignorar a nacionalização do brega-funk a partir de 2018. Um dos fenômenos digitais daquele ano, a MC Loma, atraiu os olhares para a produção periférica recifense, criando uma nova cena para o gênero que era restrito ao local. Desde então, há o exemplo do sucesso "Surtada (Remix)", canção que possui 136 milhões de streaming no Spotify, ficando em 1º lugar na plataforma durante 36 dias, além de figurar entre as mais escutadas em outros países.

A presença do brega-funk no streaming, entretanto, não foi de hora para outra. Embora tenha grandes produtores locais envolvidos com o gênero e músicas muito populares, não havia quem distribuísse de uma maneira formal os conteúdos produzidos por MCs locais. Havia algumas alternativas: ou os artistas eram visados por produtoras e outros selos em São Paulo ou material era subido apenas no YouTube e redes sociais, sendo consumido de forma restrita a alguns públicos.

Foi quando o Recife passou a atrair, novamente, os negócios de distribuição de música. Um deles é a ONErpm, a primeira distribuidora global a abrir um escritório no Nordeste, em 2020. "Viemos para cá, porque o mercado foi aquecido totalmente pelo Nordeste. Não é uma coisa que vem de hoje. Tem pelo menos dois, três anos, que nós analisamos que a região é o principal celeiro produtor de música. Se formos pensar nos tipos, nos produtores e quais músicas estão surgindo, o Nordeste é o primeiro em quase tudo", conta Julian Lepick, diretor regional da empresa.

A decisão de abrir um escritório na região, que agora terá um novo em Fortaleza, surgiu a partir da análise do mercado local. "Não há região que produza mais que o Nordeste. E o que a gente precisava para estar à frente do mercado era dar suporte e informação para que ele naturalmente cresça. Como ele é o maior mercado, ele tende a ser o maior em números também. Os artistas nordestinos entraram em primeiro lugar no top 100 do Spotify, mas também no YouTube", aponta Julian.

O escritório físico da ONErpm foi instalado no Recife no fim de 2020. Desde então, a empresa conseguiu fazer 1,5 bilhões de streams com os artistas locais. "A distribuição digital é um mercado muito novo. Antigamente, as pessoas utilizavam as plataformas como YouTube basicamente como redes sociais. Postava um vídeo de um artista que você curtir o show, porém mais como um story que você faz hoje no Instagram, porque era uma recordação. De um tempo para cá, houve uma maturidade maior do mercado, tendo a necessidade das distribuidoras para fazer um elo entre artistas, selos e produtores de conteúdo com as plataformas digitais. Somos nós quem publicamos os conteúdos em plataformas com Spotify, Deezer e YouTube Music", enfatiza Lepick.

A ONErpm não apenas publica, como também trabalha à frente de vários artistas no digital. Mas o crescimento do Recife veio, basicamente, a partir de um olhar atento à profissionalização da cultura brega na cidade. "O brega é um movimento muito forte em Pernambuco como um todo. E era uma necessidade de estar próximo desse público, que tem muita produção de conteúdo. Eu acho que Recife é um dos lugares com mais produções. Temos produtoras como a Tropa, a Tudo Nosso Produtora, a Brega Inn Funk, que surgiu ano passado, mas tem muitos artistas em nível nacional", afirma Julian, que trabalha com artistas como os Neiffs, MC Rogerinho e Banda Sentimentos.

Piseiro dominando mercado

Se Recife é o grande polo do brega, Fortaleza é o grande celeiro do forró. A cidade receberá, em março, o segundo escritório da ONErpm, com foco no gênero e também no piseiro. A capital cearense recebeu recentemente, também, um novo escritório do Sua Música, o Sua Música Space. Inicialmente, a empresa trabalhava como um site musical e hoje possui múltiplas frentes: tem distribuidora (Sua Música Digital), que atende a nomes como João Gomes e Tarcísio do Acordeon; produtora (Sua Música Records) e editora, para registro de compositores. 

A empresa é uma das responsáveis, por exemplo, do sucesso de João Gomes. O artista pernambucano, de apenas 19 anos, conseguiu ultrapassar 1 bilhão de visualizações em seu canal no YouTube com apenas 8 meses de carreira. Ele foi apresentado no Duelo de Vozes ao mercado. "Chamamos artistas que estavam começando as suas carreiras e criamos eliminatórias. João Gomes ficou em segundo lugar e perdeu por poucos votos. Assinamos com ele e o seu primeiro show ao vivo foi no São João de Todos, realizado por nós", conta Roni Maltz Bin, o CEO da marca.

Escritório

Em Fortaleza, a empresa investiu R$ 2 milhões no escritório, funcionando em 1.200 m². O espaço abriga um hub de produção para artistas, influenciadores e criadores de conteúdo, com três estúdios de gravação, palco para shows e transmissões, salas de reunião e área de lazer e games. A ideia é que esse formato se expanda para outras capitais, contemplando o Nordeste de forma mais abrangente. Roni Maltz Bin, CEO da marca, antecipa que deverá inaugurar um espaço similar no Recife, com enfoque no brega-funk.

A marca foi criada por Éder Rocha Bezerra em 2010, em João Pessoa, como um site que disponibilizava shows de forró ao vivo. Em 2013, a marca foi comprada por Roni Maltz Bin, Rodrigo Amar e Alan Trope e se transformou também em aplicativo. Hoje, conta com mais de 8 milhões de ouvintes mensais e 15 mil artistas cadastrados, sendo um contraponto às gigantes do streaming, internacionais.

"Naquela época conhecemos o site pela internet e vimos que existiam muitos usuários e uma indústria de música independente gigante no Nordeste. Decidimos adquirir pela oportunidade, pois esse era um mercado inexplorado pelas grandes gravadoras", diz Roni. "O Sua Música surgiu como uma solução para esse nicho, que já deixou de ser nicho pois os artistas possuem um alcance muito grande."

"Com o tempo, passamos a desenvolver outras soluções, como a Sua Música Digital, que atua como distribuidora, colocando as músicas dos artistas nas outras plataformas, além de fazer o marketing da música e cuidar da sua monetização, pagando os royalties ao artista", explica o CEO. Neste ano, inclusive, a empresa venceu uma concorrência internacional e renovou o contrato de distribuição digital com Vítor Fernandes e Tarcísio do Acordeon por mais cinco anos.

"Já no Sua Música Records, viramos sócio do artista e, além das músicas nas plataformas, vendemos shows. Por fim, a editora ajuda os compositores a cadastrarem suas músicas." Já são 12 artistas agenciados pela empresa — entre eles, Japãozin, artista que soma mais de 75 milhões de visualizações no YouTube.

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