100 ANOS DA SEMANA DE 22

Racismo e hegemonia paulista são revistos no centenário da Semana de Arte Moderna

Questionamentos ainda são feitos aos vínculos dos modernistas com a aristocracia cafeeira, chegando até às discussões atuais sobre gênero e sexualidade

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Emannuel Bento

Publicado em 14/02/2022 às 19:42 | Atualizado em 14/02/2022 às 19:44
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Os nossos tempos continuam modernistas no sentido de rever e contestar cânones e histórias oficiais - ou a "história dos vencedores". Esse ímpeto chegou à própria Semana de Arte Moderna de 1922, que celebra o seu centenário. Os questionamentos ocorrem em torno dos vínculos dos modernistas com figuras da aristocracia cafeeira, a hegemonia da narrativa de São Paulo, que teria apagado outros modernismos pelo País, chegando até às discussões atuais sobre raça, gênero e sexualidade.

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Para começar, a Semana de Arte Moderna, realizada no Theatro Municipal de São Paulo, foi financiada por nomes como Paulo Prado, que presidia a segunda maior companhia produtora de café do Brasil, numa época em que o País produzia 80% do café mundial. O seu pai, Antônio Prado, foi um dos grandes incentivadores da imigração italiana, numa tentativa de embranquecer a mão de obra assalariada daquela parte do Sudeste após a abolição da escravatura.

Figuras como Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral eram descendentes dessa elite com antepassados diretamente ligados ao País escravagista. Contudo, ainda não existia um questionamento dessa ligação, apesar da vontade dos artistas em estabelecer diálogos com as culturas afrobrasileira e indígena.

"Esse é um questionamento um pouco mais recente. A Semana não nasceu da margem para o centro, mas sim do centro para as margens. Ela é financiada por interesses artísticos e também geopolíticos", pontua Paulo Roberto Pires, professor da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e editor da Serrote, revista de ensaios do Instituto Moreira Salles (IMS).

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SEMANA DE 22 Casal Tarsila e Oswald a bordo do navio Lotus, em 1926 - DIVULGAÇÃO

Essa visão de mundo dos modernistas da Semana, é claro, acabou respingando na produção dos anos subsequentes. Existem alguns casos emblemáticos, como o quadro A Negra (1923), de Tarsila do Amaral. A própria pintora chegou a dizer que esse quadro fez muito sucesso na Europa: "Eu tenho reminiscências de ter conhecido uma daquelas antigas escravas, quando eu era menina de cinco ou seis anos, sabe? Escravas que moravam lá na nossa fazenda, e ela tinha lábios caídos e seios enormes, porque, me contaram depois, naquele tempo, as negras amarravam pedra nos seios para ficarem compridos e elas jogavam para trás e amamentarem a criança pelas costas.

O resultado da obra é uma visão caricatural, com uma modelo retratada com grandes beiços e pés gigantes que servem para sustentar um seio imenso que simboliza o ofício da ama de leite. Como pontuou Lilia Moritz Schwarcz, em recente ensaio publicado, a obra traz "a tensão e a grande contradição silenciosamente partilhadas pela sociedade brasileira: a escravidão e depois o racismo estrutural e institucional".

"Os negros e a cultura brasileira de matriz africana foram representados nos anos 1920 pelo viés do exotismo, influenciado pela onda negrista europeia. Isso só tem sido visto de forma crítica recentemente. Os artistas negros tiveram mais dificuldade para se inserir e para serem reconhecidos, mas hoje estão sendo reavaliados e têm tido sua obra mais estudada, mais difundida", diz Gênese Andrade, organizadora da coletânea Modernismos 1922 — 2022, que reúne ensaios como o de Lilia Schwarcz.

"O fato de Tarsila vir de uma família de fazendeiros que usaram mão de obra de escravizados não invalida ou diminui sua obra", continua Gênese. "É importante considerar que os modernistas eram fruto de seu tempo. Oswald e Tarsila vinham de famílias abastadas e os modernismos contaram com o apoio de mecenas, como Olivia Penteado, Paulo Prado e René Thiollier que eram da elite. Os demais, como Mário de Andrade, Anita Malfatti, Di Cavalcanti e outros, não eram da elite. A questão deve ser apontada e discutida criticamente, mas sem desconsiderar o contexto".

Gênese também ressalta que as mulheres foram protagonistas da Semana, mas muitas foram esquecidas. "Além de Anita Malfatti, tivemos Zina Aita e Regina Gomide. Ao longo da história, elas acabaram sendo menos citadas, mas estavam lá. Ainda na programação, tivemos mulheres musicistas, como Guiomar Novaes, Paulina d’Ambrosio e Lucila Villa-Lobos, interpretando Villa-Lobos; e ainda a participação da dançarina Yvonne Daumerie. Essa forte presença feminina é comentada por K. David Jackson no ensaio para o livro 'Modernismos 1922-2022'."

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CONFLITO Foi mais do que troca de farpas o embate entre modernistas e Lima Barreto - REPRODUÇÃO

Ainda sobre raça, outro episódio que vem sendo pensando é o conflito dos modernistas da Semana com Lima Barreto, escritor negro do Rio de Janeiro que negava ao ufanismo da Primeira República. Ao ler uma edição da Klaxon, revista publicada pelo grupo de modernistas da Semana, o fluminense escreveu um artigo no periódico semanal Careta para criticar o ar de descoberta com que os paulistas falavam de futurismo.

A revanche dos paulistas foi bastante ofensiva. Na edição nº 4 da Klaxon, em um texto sem assinatura, Lima Barreto é chamado de “escritor de bairro” que, armado de uma "navalha", "desembocou duma das vielas da Saúde, gentilmente confiado nas suas rasteiras". "Nesse caso, eles mostram tudo. Uma visão preconceituosa e classista que acho que marca a produção da Semana. O negro nunca é sujeito, só objeto", diz Paulo Roberto Pires.

"Eu acho muito curioso que a Semana não deu valor ao samba e ao choro. Pixinguinha era para ter sido ouvido melhor. Ele realizava na prática muitas coisas que os modernistas pensavam: a busca de uma dicção original, a relação com a técnica. Pixinguinha foi um dos primeiros a ter contrato com gravadora. São limites que estão discutidos e que não têm nada a ver com a rixa entre Rio e São Paulo", continua.

Por falar no Rio de Janeiro, o jornalista e escritor Ruy Castro iniciou uma verdadeira cruzada em colunas de jornais para mostrar a injustiça aos modernistas da capital fluminense. Em As Vozes da Metrópole (Companhia das Letras), ele lista 41 desses nomes esquecidos pelo tempo. "Um dos motivos é que eles eram jornalistas e escritores
profissionais, não playboys e diletantes, membros de uma ação entre amigos", criticou, em entrevista ao Estado de São Paulo.

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CENTENÁRIO DA SEMANA DE 22 "Klaxon", revista publicada pelos modernistas da Semana de 22 - REPRODUÇÃO

A própria canonização da Semana costuma ser associada à produção acadêmica da Universidade de São Paulo (USP), que a partir dos anos 1950 começa a dar a importância que hoje o evento tem. "As nossas universidades federais nem sempre produzem teses e debates com a mesma velocidade e qualidade como a USP produziu”, diz o curador Marcus Lontra, responsável pela exposição de 90 anos da Semana na Caixa Cultural do Rio.

"Quando você tem uma cidade como São Paulo, que cresceu enormemente no século 20, com um desenvolvimento industrial gigante, a burguesia paulista cria uma universidade forte. E ela começa então a buscar a sua própria história. E nessa história, que é pouca, ela se debruça na Semana de 22, que é um momento importante com alguns aristocratas e jovens oligarcas rurais paulistas. Eles tentaram uma ação cultural curiosa, como uma sacudida", continua Lontra.

Para além das controvérsias, as antigas e novas críticas em torno da Semana mostram que seus integrantes e obras não ficaram estanques ao longo do século. A arte, não só a moderna, não é congelada, e suas significações mudam com o tempo

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