Recife também buscava o seu modernismo na Semana de 22
Em importante momento de criação de identidades nacionais, modernismo de Pernambuco ganhou aspectos próprios com inspiração no regionalismo
O porto histórico com ligação à Europa, uma imprensa com influência regional, a sociologia de Gilberto Freyre, a criação espontânea dos passos de frevo nas ruas, que pulsavam e ferviam pela liberdade… Na década de 1920, Recife era uma cidade modernista. O século passado foi repleto de artistas plásticos transgressores que fincaram seus nomes no mercado nacional e internacional. De início, Cícero Dias, Lula Cardoso Ayres, Vicente do Rêgo Monteiro. Depois, José Cláudio, Francisco Brennand, Tereza Costa Rêgo, Gilvan Samico, João Câmara, Raul Córdula, Montez Magno e Reynaldo Fonseca.
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Mas na disputa pelas narrativas, foi a Semana de Arte Moderna de 22, realizada no Theatro Municipal de São Paulo, que terminou sendo considerada o marco inicial do modernismo no Brasil. O embate diz sobre o próprio século 20, que trouxe a ideia de modernismo em um momento de reorganização de forças regionais no país. São Paulo se tornou um símbolo de progresso, enquanto a nova região Nordeste - que até pouco tempo antes era apenas o "Norte" - ficava conhecida pelo atraso econômico, social e fortes estiagens.
É nesse contexto que surge a ideia do "regionalismo", capitaneada por Gilberto Freyre para defender o valor daquela sociedade rural que não conseguiria se adaptar ao progresso paulista. Se o modernismo difundido por Mário e Oswald de Andrade trazia uma ideia de ruptura, muito inspirada por vanguardas europeias como o futurismo, o modernismo daquele novo Nordeste se pautava também pela defesa de uma tradição.
"A sociedade brasileira deixava de ser agrária, começava a se industrializar. Isso também ocorreria em Pernambuco. O modernismo, então, ocorre entre círculos privilegiados. É a história da erudição dos filhos das elites, que se interessam pelas vanguardas que varrem a Europa", diz o jornalista e crítico de arte Bruno Albertim, que lançará em breve o livro "Pernambuco Modernista" pela Cepe Editora.
O pintor, desenhista, muralista, escultor e poeta Vicente do Rego Monteiro (1899-1970), por exemplo, foi estudar muito jovem com os irmãos em Paris, quando teve contato com a arte moderna europeia e começou a realizar exposições de tom modernista antes da Semana. "Ele tinha uma pintura indigenista, que despertou muito interesse dos paulistas, que queriam definir uma identidade essencial brasileira", conta Albertim.
"Rego Monteiro fez exposições em São Paulo e no Rio de Janeiro antes de Semana de 22. Por isso, suas obras foram incluídas no evento, porque, ao partir para a Europa, ele deixou algumas delas com Ronald de Carvalho, as quais foram expostas no Theatro Municipal", acrescenta Gêneses Andrade, professora da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) e organizadora do livro "Modernismos 1922-2022", publicado pela Companhia das Letras.
Outra curiosidade é que Recife teve a primeira exposição de arte moderna europeia na América Latina, em 1930. Pela proximidade com artistas e galeristas, Vicente do Rego Monteiro trouxe obras de Picasso, Léger, Miró e Braque, que ficam expostas numa mostra no Teatro de Santa Isabel. "O público não entendeu nada e a exposição, que era comercial, foi um fracasso de vendas", diz Bruno Albertim.
De acordo com o crítico, houve uma disputa por um campo simbólico entre o grupo de Mário de Andrade e de Gilberto Freyre, que queria construir uma tradição para a região. No "Livro do Nordeste", lançado em 1925 para o centenário do "Diario de Pernambuco", o jovem intelectual escreveu vários manifestos na defesa do tradicionalismo.
Esse viés regionalista fez com que o modernismo de Pernambuco tivesse características muito próprias. "Aqui, as pinturas tinham um padrão cromático mais intenso, que refletia a cor local. Brennand falava disso. Cícero Dias, talvez o nome mais importante do modernismo pernambucano, dizia que quem quisesse entender o mais puro azul, deveria olhar para o céu do Recife. Era um azul no limite do perfeito."
Em 1931, foi realizado na Escola Nacional de Belas Artes o "Salão Revolucionário", exposição que abrigou, pela primeira vez, artistas de perfil moderno e modernista. Um dos destaques foi o painel de 15,5 metros de largura por 2 metros de altura "Eu Vi o Mundo... Ele Começava no Recife", de Cícero Dias, obra-prima de sua trajetória que escandalizou por trazer mulheres nuas, que, junto à coloração saturada, criava um certo clima sensual.
Outra característica pernambucana foi o figurativismo. A partir da década de 1950, a arte do Sudeste começou a ficar cada vez mais abstrata, por inspiração do concretismo e do neoconcretismo. Mas em Pernambuco, os artistas continuaram pintando figuras e paisagens, a exemplo de Tereza Costa Rêgo, que criou clássicos de sua carreira até os anos 1990.
No Recife, inclusive, a celebração do modernismo ocorre com a exposição "Viva Tereza, Tereza Viva", montada no Museu do Estado com curadoria de Bruno Albertim e Marcus Lontra. Ainda foi lançado o livro "A Liberdade em Vermelho" (Cepe Editora), organizado pela neta Joana Rozowykwiat com o artista plástico Raul Córdula. Em junho, a Fundação Joaquim Nabuco irá inaugurar a exposição "Um Pernambucano na Semana de 22: Vicente do Rego Monteiro", realizada com curadoria de Rodrigo Cantarelli na sala que leva o nome do pintor no campus da instituição no Derby, no Recife.
"Pernambuco foi jogado à deriva no mainstream da arte brasileira, mas hoje, na verdade, percebemos que certas estratégias de relação com a cultura popular partiram da sensibilidade pernambucana", opina Marcus Lontra, que também foi curador da mostra dos 90 anos da Semana de 22, em 2012, na Caixa Cultural do Rio de Janeiro.
"Lula Cardoso Ayres, por exemplo, ainda não teve o destaque que merece na historiografia da arte brasileira. Janete Costa também que deu valor erudito ao popular em seu trabalho como arquiteta de interiores. O modernismo pernambucano é muito louvável por essa aproximação com a arte popular. Tereza, Brennand, Abelardo da Hora, Samico… Eu acho essa contribuição pouco conhecida, analisada e comentada. Ariano Suassuna, de maneira radical, tentava valorizar isso", continua.
Como vivemos tempos de revisionismo, o centenário da Semana de 22 tornou-se, então, uma oportunidade para revisitar esses modernismos. "Seja em Pernambuco, no Rio ou em Minas, a ideia de modernismo é parecida: uma tentativa de criar uma história nacional a partir do reconhecimento dessas influências regionais. Esse aniversário deve servir para que nós conheçamos essas produções que são muito ricas e muito intensas", conclui Lontra.
"São Paulo é importante, mas ela não explica tudo", sintetiza Albertim. "Na sua tentativa de ser hegemônica, a capital paulista esconde várias outras vertentes e histórias da arte no Brasil. Vivemos o momento de pequenas histórias capazes de dar conta de grandes sistemas, de revisar essas historiografias hegemônicas. Portanto, entender que há um modernismo do Pará, da Bahia faz parte desse momento importantíssimo de revisão e de reconstrução, ampliando a participação de outras vozes nessa história oficial", finaliza.