Semana de Arte Moderna: cem anos depois, Brasil ainda busca a sua modernidade
Longamente discutida nos últimos 100 anos, herança do evento permanece viva no imaginário da sociedade, em práticas culturais e nas tradições midiáticas
"Acho perfeitamente dispensável comemorar o trigésimo aniversário da Semana. Que esperassem o centenário. Se no ano de 2022 ainda lembrarem disso, então sim.” A frase é do aclamado poeta recifense Manuel Bandeira em resposta a um questionamento do Diário Carioca, em 10 de fevereiro de 1952, dentro de um período de forte resgate da Semana de Arte Moderna de 1922, realizada de 13 a 17 de fevereiro no Theatro Municipal de São Paulo.
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Cem anos depois, o cenário de mudanças de um início de século se repete. Ao invés da Gripe Espanhola (1918-1920), vivemos a pandemia da covid-19. No lugar do começo da industrialização, temos os impactos da tecnologia e da aceleração digital no mundo do trabalho, da comunicação e na própria visão de mundo de toda uma geração. E, ainda assim, continuamos desvendando a nossa brasilidade.
Fosse ironia ou desprezo de Bandeira, que não participou da Semana, mas teve o seu poema "Os Sapos" lido com entusiasmo no abre-alas, eis que o centenário não foi esquecido. Pelo contrário, trouxe uma notável discussão em torno dos desdobramentos, dos bastidores e da própria autenticidade do evento que queria romper com valores do passado e buscar por uma nova arte brasileira.
Em 1922, a noção de nacionalismo dos países foi atualizada após a Primeira Guerra, e o Brasil buscava por uma identidade após séculos de escravidão e também estimulado pela jovem república, ainda que fosse bastante aristocrática. E foram alguns dos filhos da elite agrária que, inspirados nas vanguardas da Europa, ajudaram a pensar na Semana, a exemplo do próprio Oswald de Andrade, autor do "Manifesto da Poesia Pau-Brasil" (1924) e "Manifesto Antropófago" (1928).
A repercussão inicial foi mais restrita ao círculo intelectual de São Paulo, cidade que crescia assustadoramente e que ainda não era a maior do Brasil. O seu significado, no entanto, foi sendo revisto ao longo da história, chegando à importância hoje conferida. Longamente discutida nos últimos 100 anos, mais do que celebrá-la, é necessário elucidar como a sua herança permanece viva no imaginário da sociedade, em práticas culturais e tradições midiáticas.
"O principal legado dos Modernismos é a defesa da liberdade estética, o reconhecimento de nossa formação plural, com as várias culturas (africana, indígena e europeia) em diálogo, a valorização do diálogo entre as linguagens artísticas e a valorização da cultura popular", resume Gênese Andrade, professora da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) e organizadora do livro "Modernismos 1922-2022", publicado pela Companhia das Letras com 29 ensaios de diferentes intelectuais.
O mercado editorial, inclusive, mostra como a demanda por novas reflexões segue ativa. A Companhia ainda lançou "Oswald de Andrade — Diário confessional", com cadernos inéditos de um dos protagonistas do movimento. Já "Modernidade em Preto e Branco", de Rafael Cardoso, mergulha em uma visão crítica das tensões políticas, raciais e sociais por trás das representações. Toda essa fortuna crítica dimensiona a longevidade do tema.
Em 1940, o próprio Mário de Andrade chegou a fazer uma revisão da Semana, mas foi a partir dos anos 1950 que ela passou a ser revisitada de forma intensa. A antropofagia foi fundamental na montagem de O Rei da Vela (1967), de Oswald de Andrade. Muitas ideias dos modernistas inspiraram a Tropicália, contracultura estética com ênfase na música dos anos 1960, no Cinema Novo e na produção de pintores e escultores como Hélio Oiticica.
"Os saraus da periferia e o slam são uma belíssima retomada dos modernismos literários, ao reposicionar a questão da oralidade, incluir o cotidiano como tema, trazer novamente a irreverência e o questionamento de questões sociais, colocar o foco sobre a cultura popular. E temos compositoras contemporâneas, como Beatriz Azevedo e Adriana Calcanhotto, que revisitam os modernismos. Ainda existem releituras de Oswald de Andrade na poesia contemporânea, com o uso do ready-made, do poema-piada, entre outros elementos", continua Gênese.
"É interessante como essa presença da Semana aparece de várias formas, como na Tropicália, na internacionalização de Tarsila do Amaral e nnuma certa cultura pop do Brasil. Existe algo do ideário da semana", pontua Paulo Roberto Pires, professor da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e editor da Serrote, revista de ensaios do Instituto Moreira Salles. "Ela se perpetua porque foi muito importante para colocar o modernismo num horizonte. Essa realimentação ocorre pelo evento ser um formulador de uma identidade cultural. Isso é superquestionável, é claro."
Em 2019, a exposição de Tarsila do Amaral - que não estava presente na semana, mas acabou se tornando um símbolo do período - foi a mais vista da história do Museu de Arte de São Paulo (Masp), desbancando Monet. Esse apelo, retroalimentado por postagens das obras nas redes sociais, deixou evidente como parte da produção da época tem força no imaginário e consegue ser "pop".
O curador Marcus Lontra, responsável pela exposição de 90 anos da Semana na Caixa Cultural do Rio, em 2012, acredita que isso ocorreu porque Tarsila talvez tenha sido o grande nome do modernismo paulista. "Ela teve sensibilidade e conseguiu criar uma cor brasileira, uma cor caipira do interior. Criou uma questão de iconografia, figuras que nos identificam, como uma coluna do Oscar Niemeyer ou um boneco do Mestre Vitalino. É um lendário, com uma visão muito estranha, uma pegada surrealista. Sem dúvidas, é uma das maiores artistas brasileiras de todos os tempos. Fora isso, acredito que a produção modernista paulista seja fraca", diz.
"Acredito que devemos ver a questão de 22 como um símbolo, independente de concretude e presença. Guardadas as devidas proporções que devemos ter pelo imperialismo cultural paulista - que não é tão culpa de São Paulo, mas pela incapacidade dos outros estados -, acho que quando olhamos para a situação atual brasileira, sobretudo a política, começamos a achar que a questão da modernidade ainda está aberta no Brasil”, continua Lontra.
"Estamos vivendo um retrocesso ao século 19. São tempos de violência, racismo. Acima de tudo, o centenário deve ser uma questão para que possamos discutir os nossos modernismos, para além de rivalidades ou bairrismos."